CONVERSAS COM PEDAL #2 | Volta à Flandres: ANTÓNIO MORGADO e MATHIEU VAN DER POEL fazem história na clássica belga. MOZZATO e MALECKI são surpresas inesperadas?

Todos os anos, a Volta à Flandres é uma das corridas mais duras e espetaculares da época. Embora Mathieu van der Poel tenha ganho tal como era esperado, analisamos a razão pela qual ninguém o conseguiu bater; e também os 3 ciclistas que mais surpreenderam num vasto pelotão .

Ninguém deu luta a Mathieu van der Poel - Havia alguma coisa que se pudesse fazer?

Mathieu van der Poel esteve soberbo na E3 Saxo Classic, nas mesmas subidas que teria de fazer na Flandres. A E3 é a maior corrida de aquecimento para a Flandres, e aí apenas um ciclista o igualou: Wout van Aert. O ciclista da Visma foi forçado a assistir à corrida a partir de casa, pois encontra-se em recuperação a uma fratura do esterno, da clavícula e de três costelas. Na Gent - Wevelgem, van der Poel foi derrotado por Mads Pedersen, muito devido à tática magistral da Lidl-Trek e ao seu perfil um pouco mais fácil. Pedersen também foi vitima de queda a alta velocidade quarta feira passada na Dwars door Vlaanderen...

Apesar do dinamarquês ter estado à partida, a sua confiança tinha sido abalada e ele estava claramente a correr sem um pensamento claro na vitória, mas sim em estar à frente dos outros e a pensar nos seus companheiros de equipa. Por isso, atacou várias vezes. Dos 87 aos 56 quilómetros para a meta, Pedersen esteve quase sempre de cara ao vento e foi apanhado precisamente na penúltima subida do Oude Kwaremont, onde a corrida começou verdadeiramente. Assim, os dois maiores rivais de van der Poel no início da semana estavam praticamente fora da corrida na altura em que a corrida entrou na sua fase decisiva.

A Team Visma | Lease a Bike também soube jogar as suas cartas: Tiesj Benoot e Dylan van Baarle nos primeiros ataques, mas van der Poel leu a corrida e manteve-se no grupo (forte) que se formou a pouco menos de 100 quilómetros do fim. A Alpecin-Deceuninck já estava a correr em modo defensivo nessa altura, mas o Campeão do Mundo sabia que não podia queimar a equipa para fechar o ataque e fê-lo ele próprio no Valkenberg. Depois, quando a corrida voltou a acalmar, a Alpecin começou a trabalhar - apesar de ter Gianni Vermeersch a correr com Pedersen lá na frente. Apesar do modesto coletivo comparado com as outras equipas, a Alpecin ainda tinha um excedente de homens, já que Vermeersch - que deu uma cambalhota sobre a bicicleta quando caiu na Dwars door Vlaanderen e recuperou a tempo de forma impressionante - nem sequer teve de fazer qualquer trabalho para van der Poel.

Na fase de transição entre Valkenberg e o segundo Oude Kwaremont, as subidas não eram tão difíceis e ainda era suficientemente cedo para a Alpecin ter os seus homens na frente e estabelecer um ritmo suficientemente elevado para que os outros favoritos não quisessem mudar, de modo a ter pernas para os decisivos 55 quilómetros finais. Quando estes chegaram, van der Poel estava claramente acima dos outros. Os ataques foram cancelados, em Oude Kwaremont conseguiu um espaço, apesar de não estar a fazer tudo, e depois limitou-se a esperar pela subida mais íngreme da corrida;

O próprio Van der Poel sabia que a chave era controlar a corrida até à segunda passagem pelo Oude Kwaremont. "Eu sabia que quando começasse a chover, o Koppenberg seria um caos. Quando todas as outras equipas começaram a atacar-nos, pedi à minha equipa para criar uma situação controlável até ao Koppenberg", disse ele na conferência de imprensa após a corrida. "Porque eu sabia que a partir dali estaria sozinho de qualquer maneira". O plano era atacar no Koppenberg, onde a corrida iria certamente dividir-se, e assim foi...

Mas, para além da sua dificuldade natural, este ano os paralelepípedos estavam molhados na besta de Flandrien. Cenas que só se viam há décadas atrás voltaram a ser visíveis no Koppenberg, com os maiores favoritos - à exceção de três ciclistas: van der Poel, Matteo Jorgenson e Mads Pedersen - a terem de sair da bicicleta devido às condições da estrada e à perda de aderência de outros ciclistas com a estrada. As diferenças eram ainda maiores do que um ataque tradicional poderia fazer. A partir daí, apesar de muito sofrimento, o especialista em resistência van der Poel tinha a corrida no papo e só precisava de se manter na bicicleta para acrescentar um terceiro título ao seu palmarés.

Os 3 M's. As grandes surpresas da Flandres: Mozzato, Morgado e Malecki

No entanto, esta edição da Flandres foi uma edição em que o maior enredo foram os ciclistas que actuaram atrás. Com a vitória de van der Poel amplamente prevista e a correr como esperado, as lutas mais emocionantes acabaram por ser na retaguarda. Alberto Bettiol e Dylan Teuns fizeram os últimos quilómetros na liderança da perseguição, enquanto outros pequenos grupos estavam constantemente na sua perseguição. Depois do Paterberg eram Michael Matthews, Oliver Naesen e Magnus Sheffield. Atrás, um grupo com quatro ciclistas da UAE Team Emirates, Tiesj Benoot, que sofreu uma avaria mecânica e recebeu a bicicleta de um colega de equipa (mais tarde justificada, mas ainda assim um momento hilariante), e mais algumas figuras... Algumas delas esperadas, outras nem tanto.

A verdadeira história da Flandres foi a de António Morgado. Não é uma surpresa, se tivermos em conta que é nosso compatriota e o primeiro ciclista a participar nas clássicas empedradas a este nível durante anos, décadas... Também estava tudo nas pernas dele. Acima de tudo, as palavras que o jovem de 20 anos proferiu no último mês não eram muito positivas. "Não gosto deste tipo de corridas", disse após o seu segundo lugar no photo-finish da Le Samyn. "Não há muito respeito entre os ciclistas e eu gosto de corridas com um mínimo de respeito", disse ele na véspera da Volta à Flandres.

Depois da Flandres deu uma entrevista à PCM em que nem sequer sorria, apesar de se ter tornado no mais jovem ciclista em 55 anos a terminar no Top 10 de um monumento no ciclismo - mais tarde, após a desqualificação de Michael Matthews, passou para o quinto lugar, e fez ainda mais história ao tornar-se no mais jovem ciclista em quase um século a conseguir esse feito. Não só para Portugal, mas para todo o mundo do ciclismo, Morgado fez história, apesar de ser talvez o ciclista que mais abertamente não gosta das clássicas empedradas. "Agora tenho essa motivação. Estou a começar a gostar destas corridas", disse dentro das salas de imprensa de Oudenaarde.

O que mais nos impressionou foi a sua resistência. Para um ciclista que acabou de fazer 20 anos há alguns meses, fazer mais de 270 quilómetros é um feito enorme. Fazê-lo contra alguns dos melhores ciclistas de clássicas do mundo foi notável, mas é incrível como ele o conseguiu. Ao longo da corrida, mantive-o debaixo de olho, pois tinhamos esperanças de que ele se saísse bem. Sempre que aparecia no ecrã, estava a rolar na parte de trás do pelotão, mas nas subidas ultrapassava vários ciclistas e encontrava-se num pequeno grupo melhor posicionado do que na subida anterior;

Quando demos por isso, enquanto todos lutavam por um lugar no pódio, uma vez que van der Poel já tinha levado a vitória, o grupo de Morgado alcançou alguns dos perseguidores que estavam na luta pelo Top 10. E era impressionante ver como ele se aproximava cada vez mais da frente da corrida, mas constantemente na parte de trás dos grupos. No Paterberg, a última subida do dia, já não foi assim. Chegou ao cimo da subida atrás de apenas alguns ciclistas do grande grupo, pois já não tinha de lutar pelo posicionamento. Este é um ciclista novato nas clássicas de paralelepípedos que está longe de conhecer as estradas ou a forma de correr nelas, mas foi incrível ver como a sua resistência o levou a subir nas duas últimas horas de corrida, mesmo quando os grandes favoritos, como Matteo Jorgenson e Mads Pedersen, cederam completamente.

Mas a sua história não foi a única que impressionou. Luca Mozzato foi, sem dúvida, o ciclista que detém agora o recorde de maior número de queixos caídos na época de 2024, depois de ter terminado em segundo lugar atrás de van der Poel no monumento belga. É um choque, mesmo sabendo que ele ganhou a Clássica Bredene Koksijde esta primavera e a Binche - Chimay - Binche no ano passado. A Arkéa - B&B Hotels está a fazer uma boa temporada até agora, marcando pontos que lhe permitem sonhar com a manutenção da sua licença World Tour. Numa tarde, Mozzato marcou 640 pontos, o que reduz significativamente a diferença para a Team DSM - Firmenich PostNL. O italiano passou incrivelmente despercebido. Os nossos olhos mal o viram até ao Paterberg, onde nos perguntávamos quem seria o ciclista da Arkéa que tinha sobrevivido a toda esta subida. Ele era o principal suspeito, mas o nosso pensamento imediato foi que há dois sprinters no grupo: Michael Matthews e o ciclista da Arkéa, independentemente de quem seja. E tinhamos razão, Mozzato estava no grupo perseguidor e beneficiou da boa colaboração que tiveram os dois grupos que estavam na frente nos quilómetros finais;

Com um sprint perfeitamente cronometrado, o italiano bateu Michael Matthews e terminou em segundo lugar. "Penso que fiz o esforço no momento certo", afirma. Esta é uma componente fundamental das clássicas empedradas, e os poucos ciclistas que escolhem melhor os seus timings acabam normalmente por colher os benefícios dela. Foi também o caso da nossa terceira grande surpresa do dia: Kamil Malecki. O jovem de 28 anos ainda não ganhou uma corrida profissional, tornou-se profissional em 2015 com a CCC, em 2019 correu para a equipa de desenvolvimento e em 2020 regressou à equipa principal. Uma queda no final de 2020 levou-o a passar 2 meses inteiros no hospital, tendo partido a pélvis e uma clavícula. Só conseguiu começar a trabalhar com a (agora chamada) Lotto Dstny em agosto e, em 2022, uma nova lesão afastou-o da competição durante quatro meses na primavera. A sua carreira estava por um fio, mas foi salva pela recém-formada Q36.5 Pro Cycling Team;

No entanto, as suas épocas de 2023 e 2024 até este fim de semana foram bastante medianas, também para um ciclista do seu calibre. Apesar de não ter corrido mais do que corridas de um dia desde o final de fevereiro, nenhuma indicava que estivesse em forma para disputar um resultado como o que obteve. Na verdade, nunca tinha terminado um monumento empedrado, tendo a sua única participação sido na Flandres 2023, onde abandonou. Por isso, foi um choque, após todos estes anos, ver Malecki de novo no topo da lista de resultados finais, e logo na maior corrida de todas para um ciclista como ele. Na Paris-Roubaix, com uma fuga ou muita sorte, é possível terminar no topo da classificação. Na Flandres, só isso não o leva longe, é preciso ter pernas para enfrentar os melhores ao longo de centenas de quilómetros de subidas, quedas, calçadas e muito mais. O polaco passou por tudo isso.

Terminou em 14º na clássica da Flandrien, em segundo lugar no segundo grupo de perseguição. Terminou diretamente à frente de ciclistas como Tiesj Benoot, Matteo Trentin, Mads Pedersen, Matteo Jorgenson e muitos outros. Esta é a recompensa da Q36.5 por apostar num homem cuja carreira nos últimos anos foi marcada por azares e lesões. Um regresso digno à televisão para Malecki, que foi para nós a surpresa absoluta da corrida, mesmo que as câmaras de televisão nunca o tenham focado verdadeiramente.

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