O livro dos 125 anos da Federação Portuguesa de Ciclismo está cheio de erros e lacunas históricas

Ciclismo
sábado, 27 dezembro 2025 a 12:10
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O livro comemorativo da Federação Portuguesa de Ciclismo acumula imprecisões graves, distorções históricas e omissões de figuras centrais da modalidade, levantando dúvidas sobre rigor editorial e prioridades institucionais.
Segundo uma publicação nas redes sociais de José Carlos Gomes, que denuncia com exactidão factos que constam do livro, como o de Afonso Eulálio venceu a 17.ª etapa da Volta a Itália em 2025. José Azevedo conquistou, como diretor desportivo, uma Volta a Espanha ao serviço da Katusha. Rui Costa foi campeão nacional de fundo em 2010, 2011 e 2012. João Almeida terminou o Giro de 2021 no terceiro lugar e sagrou-se campeão nacional de scratch em juniores no mesmo ano em que foi sétimo classificado na Volta a França do Futuro, em sub-23. David Rosa terminou a carreira após os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Ricardo Marinheiro foi vice-campeão do mundo júnior de XCO em Anadia, em 2022.
Nenhuma destas afirmações corresponde à verdade. Ainda assim, surgem apresentadas como factos consumados no livro que a Federação Portuguesa de Ciclismo lançou esta semana para assinalar os seus 125 anos de atividade. Trata-se, por isso, de uma obra que acaba por corporizar, em formato impresso, dois conceitos muito em voga no espaço digital, as fake news e as chamadas alucinações associadas a sistemas de inteligência artificial.
Seria, no entanto, um erro pensar que os exemplos acima esgotam o catálogo de lapsos factuais presentes em “125 Anos na História do Ciclismo Português”. O leitor fica a saber que Nelson Oliveira abandonou a prova de fundo dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro por se ressentir do esforço do contrarrelógio. Na realidade, a prova de fundo antecedeu o contrarrelógio e o ciclista bairradino desistiu na sequência de uma queda. O livro afirma ainda que o madison é uma prova disputada por equipas de dois ou três ciclistas, que Acácio da Silva vestiu a Camisola Rosa do Giro a 2 de maio numa edição, a de 1989, que apenas começou no dia 21, e que, nesse mesmo ano, o transmontano perdeu a Camisola Amarela na Volta a França para Erik Breukink, quando quem herdou a liderança foi, de facto, o norte-americano Greg LeMond.
A sucessão de incongruências continua com a indicação de que no Campeonato da Europa de pista de juniores de 2025 participou um ciclista de 23 anos. Pode parecer caricato, mas consta também da narrativa que Lucas Lopes terminou no 20.º lugar da Taça das Nações, uma competição exclusivamente por equipas, sem classificação individual. Acresce ainda a informação errada de que a pista olímpica de BMX, em Sangalhos, foi construída em 2013, quando a sua inauguração ocorreu apenas em 2019.
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Estes exemplos não pretendem ser exaustivos, mas são suficientemente ilustrativos do desleixo e da ignorância que atravessam as 224 páginas da obra. Há ainda um problema que ultrapassa o plano factual e entra diretamente no domínio da verdade histórica. Os doze anos de presidência de Delmino Pereira, o período de maior sucesso desportivo das seleções nacionais e aquele em que Portugal mais eventos internacionais acolheu, são resumidos a um único parágrafo, deixando implícita a ideia de que o dirigente se limitou a executar um plano herdado do seu antecessor, Artur Lopes. Essa leitura é intelectualmente desonesta e colide frontalmente com os factos.
Uma das secções mais difíceis de justificar é a que elenca as 30 personalidades mais importantes do ciclismo português. O critério parece ancorado numa visão datada, presa à década de 1990, e orientada para homenagens de conveniência.
É incompreensível que uma lista desta natureza ignore o presidente mais medalhado da história da Federação e um dos mais titulados de todo o desporto nacional, o dirigente associativo que idealizou e construiu em Portugal uma das melhores corridas do mundo, a mulher que organizou e dirigiu as provas de estrada de ciclismo e paraciclismo em Jogos Olímpicos, o selecionador nacional que transformou a mentalidade competitiva da seleção e foi campeão do mundo e medalhado olímpico, o selecionador que converteu uma vertente residual num caso de sucesso internacional, o empresário que abriu portas do ciclismo mundial a talentos portugueses com campeões do mundo e vencedores de Grandes Voltas na sua carteira, ou o português que começou como mecânico da seleção nacional, passou pela gestão do WorldTour e construiu uma carreira de topo como gestor desportivo em equipas de primeira linha.
Não é necessário nomeá-los, qualquer leitor com conhecimento mínimo da modalidade saberá identificá-los.
Num livro que se propõe fixar a História do ciclismo português, é particularmente chocante a ausência de referências a dois dos ciclistas nacionais com maior sucesso em provas internacionais, José Martins e Tiago Machado. O primeiro foi oitavo classificado na Volta a Espanha, 12.º na Volta a França, terceiro na Volta à Catalunha e quarto na Volta à Suíça. Quantos ciclistas portugueses apresentam um palmarés desta dimensão?
Tiago Machado foi, durante a década de 2010, um dos ciclistas mais regulares do mundo em provas de uma semana, com múltiplos top 10 e vários pódios em competições internacionais desse perfil. Nelson Oliveira, recordista nacional de participações nas três Grandes Voltas e de top 10 em Campeonatos do Mundo, além de detentor de dois diplomas olímpicos, é também praticamente ignorado.
A evolução das vertentes de BTT, pista, paraciclismo e BMX não é explicada nem contextualizada. Não existe uma única linha dedicada à Volta a Portugal Feminina, e os feitos de Maria Martins, uma verdadeira pioneira do ciclismo feminino português, não são valorizados nem enquadrados no seu devido contexto histórico.
“Num tempo marcado pela rapidez da informação e pelas novas tecnologias, acreditamos que um livro continua a ser um instrumento único para preservar a memória, fixar a história e garantir que ela não se perde”, afirmou o atual presidente da Federação Portuguesa de Ciclismo, Cândido Barbosa, na nota de imprensa que acompanhou o lançamento da obra. À luz do conteúdo apresentado, a declaração acaba por assumir um tom involuntariamente irónico.
Resta, no entanto, uma pergunta inevitável. Quantos milhares de euros custou à Federação este objeto de mil trezentos e trinta gramas em formato de livro? A questão torna-se ainda mais pertinente quando se recorda que, há pouco tempo, o próprio presidente admitiu ter recorrido a um empréstimo bancário para assegurar a atividade corrente da Federação.
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