"Este lugar é onde a minha carreira na estrada começou em 2018 e ganhar esta etapa depois de um longo período sem conseguir. Finalmente outra vez... É uma sensação muito boa". O ciclismo venceu hoje, com
Wout van Aert a conquistar uma brilhante e inesperada vitória na etapa "Strade Bianche" da
Volta a Itália. Uma vitória da determinação, da resistência física e psicológica.
O ciclismo é um desporto em que muitas pessoas não se veem como fãs de uma equipa ou de um ciclista específico, ao contrário da maioria dos desportos. Embora seja um desporto de equipa, muito do que me atrai nele é a ausência do tribalismo e do ódio que acompanha muitos outros contextos competitivos. É um desporto de resistência, onde o esforço e a dedicação são obrigações absolutas. Por isso, quando há etapas cheias de ação como a de hoje, em Siena, o gosto pelo ciclismo intensifica-se.
Neste Giro, nem todas as etapas foram inspiradoras. As etapas 1, 3 e 5 pareceram demasiado controladas, conservadoras, sem vontade de arriscar. Dias sem ataques, sem emoção. Um regresso à edição de 2023, com ritmo e gestão, mas sem espetáculo. Pelo contrário, a etapa 9 ofereceu tudo: técnica, dureza, incerteza e um final emocionante.
Raramente celebro vitórias individuais, mas Wout van Aert é uma excepção. E por várias razões:
- Porque, mesmo sendo um dos melhores, é frequentemente tratado com desdém. Na Bélgica, onde o ciclismo é rei, a rivalidade com Mathieu van der Poel gera paixões extremas, mas também comportamentos reprováveis. O próprio Van der Poel já foi alvo de agressões simbólicas em pleno esforço. Van Aert, por sua vez, recebe críticas contínuas, não raramente injustas.
- Porque Van Aert é constantemente comparado com Van der Poel e Pogacar, dois talentos únicos, como se fosse obrigado a igualá-los. A exigência é injusta. Enquanto Van der Poel desfruta de treinos com bom tempo em Espanha e uma estabilidade física exemplar, Van Aert tem sofrido com lesões, quedas e interrupções.
- Porque os azares acumulam-se. Em 2023, podia ter ganho a Paris-Roubaix, mas furou. Em 2024, uma queda na Dwars door Vlaanderen arruinou-lhe as Clássicas e, mais tarde, nova queda na Volta a Espanha. Mesmo quando voltou em boa forma, perdeu por detalhes na Brabantse Pijl e outras provas importantes.
- Porque é ridicularizado de forma desproporcionada quando falha tácticas ou perde duelos. Como se errar fosse proibido para ele. E como se cada derrota fosse uma afronta às expectativas mediáticas. Em 2025, muitos consideraram que devia abandonar o Giro após duas etapas. Mas ele resistiu.
- Porque tantas vezes fica à porta das vitórias que parece carregar uma maldição. E, ainda assim, regressa sempre. Como em Siena, quando respondeu a todos os ataques, igualou Del Toro na Via Santa Caterina e ultrapassou-o na penúltima curva. Venceu.
Neste Giro, chegou doente e longe do seu melhor. Era apenas mais um entre muitos, segundo os críticos. Mas acumulou ritmo, encontrou posição, e hoje, contra todos os prognósticos, brilhou.
Mostrou resistência, capacidade técnica, frieza. Enfrentou rampas acima dos 15%, gravilha e rivais mais leves. E sobreviveu. Melhor ainda: venceu.
Assisti à sua vitória em Castelo Branco na Vuelta, com a camisola vermelha. Recordei Calais, no Tour 2022. Van Aert é versátil como poucos. Um mestre de todos os ofícios, ainda que não domine nenhum por completo. Mas aproxima-se, e isso torna-o especial.
Por isso, quando ele conseguiu igualar Isaac del Toro na icónica Via Santa Caterina, e depois o ultrapassou na rua mesmo por cima, festejei e aplaudi. É uma vitória de quem foi tantas vezes injustiçado, de quem resistiu quando todos diziam para parar. Uma vitória simbólica, merecida, memorável.
Van Aert é a prova de que a resiliência ainda importa. Que o talento constante, mesmo quando sem vitórias, é digno de respeito. E que no ciclismo, como na vida, vale a pena persistir. Que esta vitória lhe devolva a confiança, e a todos nós o prazer de ver ciclistas humanos, falíveis, mas incrivelmente apaixonados por aquilo que fazem.
Original: Rúben Silva