Países Baixos vs Bélgica, Estrada vs Ciclocrosse, Mathieu van der Poel vs Wout van Aert. Uma rivalidade com 13 anos de história e que transcende várias vertentes do ciclismo.
Podiamos até perfeitamente estar a falar de dois compatriotas. Na realidade Mathieu van der Poel nasceu na Bélgica em Janeiro de 1995 em Kapellen, cidade da província de Antuérpia que fica a uns meros 40 quilómetros de Herentals, onde nasceu Wout van Aert em setembro de 1994. No entanto, enquanto que Wout van Aert (um atleta de primeira geração se excluirmos o seu tio afastado Jos Van Aert que também foi ciclista profissional) decidiu representar a sua terra natal, já Mathieu van der Poel (um atleta de terceira geração, neto de Raymond Poulidor, ex-vencedor da Vuelta e por três vezes segundo classificado do Tour, e filho de Adrie van der Poel, vencedor da Liege-Bastogne-Liege, Volta a Flandres e um Campeonato do Mundo de Ciclocrosse) decidiu representar a nação do seu pai e grande parte da sua família, os Países Baixos.
Não existe no mundo do ciclismo atual tamanho paralelismo e rivalidade mais intensa do que esta. Quando falamos em grandes estrelas no ciclismo moderno há sempre a referência aos "Big 4" (Tadej Pogacar, Jonas Vingegaard, Remco Evenepoel e Primoz Roglic) mas nunca podemos concluir este pensamento deixando de lado os outros dois grandes nomes do ciclismo atual: Mathieu van der Poel e Wout van Aert.
Estava destinado a acontecer, desde muito cedo ambos se destacaram no ciclocrosse, modalidade com grandes raízes históricas precisamente nos países que ambos representam. O percurso e a ascensão destes dois grandes nomes é tão semelhante que para vos começar a contar a história entre ambos tenho de remontar a 2011. Mathieu van der Poel tinha um ano absolutamente dominante no ciclocrosse de júniores.
Mathieu van der Poel | Wout van Aert | |
2011-12 | 16 | 1 |
2012-13 | - | - |
2013-14 | 11 | 12 |
2014-15 | 6 | 9 |
2015-16 | 7 | 10 |
2016-17 | 21 | 9 |
2017-18 | 23 | 6 |
2018-19 | 20 | 2 |
2019-20 | 5 | 0 |
2020-21 | 5 | 3 |
2021-22 | 0 | 2 |
2022-23 | 5 | 6 |
2023-24 | 6 | 1 |
Total | 126 | 61 |
Frente a frente entre Mathieu van der Poel e Wout van Aert no ciclocrosse.
No entanto olhar para um frente-a-frente entre ambos é dizer pouco. Porque na realidade estamos a falar de 2 nomes que dominaram a modalidade desde que chegaram à divisão de Elite. Só para termos noção no nível de domínio de ambos. Van der Poel venceu 161 corridas de ciclocrosse ao longo da sua carreira enquanto que van Aert venceu 85. Tudo somado, entre ambos, venceram entre 60%-70% de todas as provas em que participaram.
A nível de grandes títulos nas modalidades destacam-se por terem ganho 9 dos últimos 10 títulos mundiais disputamos, sendo que a exceção à regra foi em 2022 quando Tom Pidcock vence em que ambos os rivais não participaram. A tendência que se nota é que tanto a nível de vitórias como desempenho frente-a-frente, houve uma vantagem de Wout van Aert numa fase mais inicial das suas carreiras enquanto ambos se dedicavam inteiramente ao ciclocrosse e há medida que ambos fizeram a transição para a estrada Mathieu van der Poel começou a pender a balança a seu favor no ciclocrosse.
Mathieu van der Poel | Wout van Aert | |
Títulos / Medalhas em Mundiais | 6/8 | 3/7 |
Títulos / Medalhas em Europeus | 3/4 | 0/3 |
Vitórias | 161 em 220 corridas | 85 em 211 corridas |
% Vitórias | 73.2% | 40.3% |
% Top 3 | 88.2% | 87.2% |
% Top 10 | 94.5% | 99.5% |
% Corridas terminadas | 98.6% | 100% |
Apesar de tanto Mathieu van der Poel ter começado a competir em estrada 2014 e Wout van Aert em 2013, foi só em 2019 que ambos se começaram a dedicar a fundo na estrada e só a partir dessa altura começaram a obter resultados de renome com o holandês a fazer parte da equipa da Corendon - Circus e o belga a fazer parte da Team Jumbo Visma (atual Team Visma | Lease a Bike, onde ainda se encontra).
Na estrada os dois ciclistas deram continuidade aos seus sucessos do ciclocrosse e rapidamente se destacaram como duas das principais figuras do pelotão. Logo desde 2019 começamos a notar as principais diferenças a nível de valências de ambos os ciclistas. Van der Poel destacou-se por vencer clássicas como a Amstel Gold Race e a Dwars door Vlaanderen bem como com um 4º lugar na Volta a Flandres (que viria posteriormente a vencer por três ocasiões, a primeira delas em 2020) enquanto que Wout van Aert vencia ao sprint e em contrarrelógios no Criterium du Dauphine e na Volta a França, bem como um Top 10 na Milan-Sanremo, que acabou também por vencer em 2020 numa das provas mais longas de sempre: com um total de 305km (!!!).
Mathieu van der Poel destaca-se como um homem de clássicas de um dia. Com muita capacidade de superar subidas curtas mas exigentes e terrenos com pisos muito irregulares, algo que já trouxe do ciclocrosse. Já Wout van Aert é mais polivalente na medida em que se defende bem nos terrenos onde van der Poel é forte mas também tem os extras de ser mais forte em provas por etapas, que requerem um alto nível de exigência física durante vários dias consecutivos, bem como a sua potência pura nos esforços de contrarrelógio que já lhe valeram várias medalhas em Campeonatos do Mundo, Campeonatos da Europa e Jogos Olímpicos.
E por falar em Campeonatos do Mundo, apesar de Wout van Aert ter esbarrado no poste por várias vezes, foi Mathieu van der Poel o único a conseguir dar um tiro certeiro (ao contrário do ciclocrosse onde ambos já vestiram a Camisola Arco-Íris). Foi no Campeonato do Mundo de 2023 em Glasgow, num dia chuvoso de agosto, que tivemos uma das provas mais disputadas das últimas edições dos Campeonatos do Mundo. Num grupo de 4 ciclistas que contava com os dois rivais, bem como o ex-campeão do mundo Mads Pedersen e o agora atual campeão do mundo Tadej Pogacar, foi van der Poel quem desferiu um golpe decisivo a 27 quilómetros do fim e van Aert foi o seu mais direto perseguidor (curiosamente este grupo de 4 ciclistas foi constituido pelos primeiros 4 classificados da Volta a Flandres desse mesmo ano, só que por ordem diferente). Van der Poel deu uma grande demonstração de forma mas podia ter deitado tudo a perder quando caiu na penúltima volta ao circuito de Glasgow, mas tudo isto não passou de um susto e o holandês acabou por bater o belga por 1m37s, tornando-se no primeiro ciclista a deter simultaneamente as camisolas de Campeão do Mundo de Estrada e de Ciclocrosse.
A nível de monumentos, nos últimos anos a tendência tem sido claramente favorável para Van der Poel, não só pelo número de participações ser maior mas também por vitórias diretas em frente a frente como o fantástico duelo que ambos travaram no Poggio na edição de 2023 da Milan-Sanremo. O holandês mais uma vez revelou ser mais forte nas subidas curtas e explosivas tendo deixado para trás um grupo de 3 ciclistas onde ao belga ficaram também o sempre presente Tadej Pogacar e o surpreendente Filippo Ganna que fez a performance da sua vida a correr em casa e roubou ao sprint o segundo lugar a van Aert. Neste campo van der Poel tem marcado a diferença para van Aert (e toda a restante concorrência) tendo-se tornado nesta época o dominador absoluto das clássicas empedradas. Já igualou o recorde de vitórias na Volta a Flandres e neste ano juntou também à Flandres a conquista da Paris-Roubaix (que venceu pelo segundo ano consecutivo) enquanto que Wout van Aert, apesar de todo o potencial demonstrado, ainda não conseguiu ir para lá da Milan-Sanremo de 2020.
Já a nível de Grandes Voltas a história é outra, Wout van Aert entrou mais cedo no nível de World Tour o que lhe permitiu mais rapidamente ter acesso às Grandes Voltas enquanto que Mathieu van der Poel via a sua Corendon falhar wildcards para Grandes Voltas. A realidade dos dois craques é diferente no que toca a Grandes Voltas, Van Aert está integrado numa equipa que luta por classificações gerais e tem a "obrigação" de estar constantemente na frente do pelotão junto do seu líder e ocasionalmente lá tem as suas oportunidades de se mostrar quer em contrarrelógios, em altas montanhas como quando venceu uma etapa que contou com passagem no Mont Ventoux, ou então no mítico sprint dos Campos Elísios em Paris. Wout van Aert já conquistou uma Camisola Verde no Tour de 2022 enquanto ao mesmo tempo rebocava Jonas Vingegaard para a sua primeira vitória na Volta a França e conseguia descarregar Tadej Pogacar nas altas montanhas. Wout van Aert esteve também bastante perto de conquistar a Camisola dos Pontos (praticamente garantida) e a Camisola da Montanha (estava em posição privilegiada) na última edição da Volta a Espanha até ter caído numa descida na etapa 16 que levava os ciclistas até aos Lagos de Covadonga, acabou por abandonar a corrida e dando também por terminada a sua época de estrada.
Já relativamente a Mathieu van der Poel a sua história é muito mais curta no que diz respeito a Grandes Voltas. Conta apenas com uma vitória no Tour, no famoso Mur de Bretagne (que vai estar de volta na edição de 2025 da Volta a França) e uma vitória na etapa de abertura da Volta a Itália de 2022 que na altura lhe valeu a Camisola Rosa durante os 3 dias em que o Giro esteve em território húngaro. Nos últimos anos, apesar do estatuto de líder que tem dentro da Alpecin e de ter menos obrigações que o seu rival para trabalhar todos os dias em prol de um ciclista que lute pela classificação geral, o holandês só tem atingido destaque quando lançou por várias o seu companheiro Jasper Philipsen à conquista de vitórias de etapa, bem também como a Camisola Verde que lhe escapa a si próprio.
Mathieu van der Poel | Wout van Aert | |
Titulos / medalhas em Mundiais | 1/2 | 0/4 |
Titulos / medalhas em Europeus | 0/1 | 0/3 |
Títulos / Medalhas Olímpicas | 0/0 | 0/2 |
Monumentos | 6 | 1 |
Vitórias / em Grandes Voltas | 2 | 13 |
Não é só no ciclismo de estrada e no ciclocrosse que podemos ver em ação os dois astros. Também no Gravel, uma modalidade em rápido crescimento e que conta com um estilo de corrida que é um pouco de um misto entre a estrada e o ciclocrosse, já começamos a sentir as presenças de Mathieu van der Poel e Wout van Aert. Não que cumpram o calendário normal de corridas, até porque os grandes eventos de Gravel coincidem com a época de estrada, que é a prioridade de ambos. É mais frequente vermos em Gravel nomes como Alejandro Valderde, Greg van Avermaet ou Jan Bakelants que terminaram as suas carreiras de estrada e correm mais por prazer do que por obrigações contratuais. Num futuro próximo será cada vez mais frequente vermos estas transições em profissionais em final de carreira, como será o caso de Romain Bardet em 2025. Talvez um dia vejamos a transição a tempo inteiro de Van der Poel e Van Aert mas de momento vamos ter de desfrutar deles apenas nos Campeonatos do Mundo. Mesmo assim, apesar de ser uma ocasião única por época, não deixa de ser impressionante que Mathieu van der Poel já conquistou também o título mundial de Gravel neste que foi apenas o terceiro mundial da história da modalidade depois de já ter terminado em 3º lugar em 2022. Já Wout van Aert teve uma presença mais discreta no mundial de 2023, tendo terminado em 8º lugar a 6 minutos do vencedor Matej Mohoric.
Já a nível de BTT, van Aert não é praticante ativo a nível competitivo. Já Mathieu van der Poel conta com pouca participações em algumas provas mas já tem como destaque um Campeonato da Europa de XCO conquistado em 2019. Mathieu também já confessou publicamente o seu desejo em disputar o Campeonato do Mundo de BTT de 2025 ao ponto de colocar em questão a sua própria presença na próxima Volta a França de forma a garantir que conquista a Camisola Arco-Íris na quarta vertente de ciclismo diferente, algo inédito na história do ciclismo masculino, visto que Pauline Ferrand-Prevot já o conseguiu fazer na vertente feminina, tendo até detido em 2014 simultaneamente os títulos de estrada, ciclocrosse e BTT, bem como conquistando o primeiro campeonato do mundo de sempre de Gravel em 2022.
Por último, e porque estamos a falar em todas as vertentes do ciclismo, convem referir também que nem Van der Poel nem Wout van Aert disputam provas de pista.
No frente a frente a tendência que se nota é que Wout van Aert foi superior a Mathieu van der Poel durante o periodo em que ambos se dedicaram exclusivamente ao ciclocrosse mas após a transição para a estrada começamos a ver a balança pender a favor de Mathieu van der Poel.
O facto de Van Aert ter mais obrigações para com a equipa da Visma enquanto que van der Poel tem a liberdade de construir o seu próprio calendário na Alpecin permite ao holandês focar-se muito mais nos seus grandes objetivos e com isto ter mais margem de manobra para gerir a sua forma física para outras vertentes como o Ciclocrosse e ocasionalmente o Gravel e BTT.
Outra tendência bastante notória é que Van Aert é muito superior no que diz respeito a provas por etapas, que requerem um elevado nível físico durante vários dias consecutivos, enquanto que van der Poel é mais forte em provas de um dia.
De forma geral, a nível de características, Wout van Aert é muito mais completo que van der Poel porque é um ciclista capaz de disputar qualquer tipo de etapas: defende-se consideravelmente melhor que van der Poel nas montanhas, é um excelente contrarrelogista e também bastante capaz ao sprint. Já van der Poel é mais forte em subidas curtas e explosivas e em corridas em piso empedrado (onde van Aert tambem se defende bem mas não com a mesma capacidade).
No final de contas, a balança tem que pender a favor de Mathieu van der Poel porque a nível de resultados acaba por superar van Aert em praticamente todos os aspetos de todas as modalidades. Tem mais títulos mundiais no ciclocrosse, disciplina onde ambos se enfrentaram durante um periodo mais longo das suas carreiras, foi campeão do mundo em estrada ao contrário de Van Aert e é também o atual campeão do mundo de Gravel bem como detentor de 6 monumentos contra apenas 1 de Van Aert.
Estando ambos no pico das suas carreiras, é possível que ainda possamos ter mais capítulos para acrescentar a esta história mas parece difícil inverter a atual tendência verificada entre ambos os ciclistas que não planeiam alterações muito significativas nas suas carreiras.