A mudança de
Juan Ayuso para a
Lidl-Trek a partir de 2026 não é apenas uma transferência de impacto, é também um verdadeiro reposicionamento estratégico para o ciclista e para uma equipa que ambiciona vencer em todos os terrenos. A saída precoce e enigmática da equipa da Emirates, com quem tinha contrato até 2028, foi justificada por “diferenças filosóficas”. Na prática, este desfecho vinha a ganhar força desde o desentendimento de Ayuso com João Almeida no Galibier durante a Volta a França de 2024. A operação permite agora à formação norte-americana integrar um líder de Grandes Voltas, algo que faltava a um conjunto que já conta com duas referências sólidas:
Mads Pedersen para o empedrado, as clássicas acidentadas e as provas de uma semana e
Jonathan Milan para os sprints em pelotão compacto.
A questão central é saber se a Lidl-Trek conseguirá articular estas três ambições numa só estrutura na Volta a França sem sacrificar nenhum dos seus trunfos.
Em 1 de setembro, a meio de uma Volta a Espanha em que Ayuso somava duas vitórias, a equipa da Emirates confirmou a rescisão mútua “na sequência de divergências na visão de desenvolvimento e no alinhamento com a filosofia da modalidade”, agradecendo de forma cortês e desejando boa sorte. O CEO Mauro Gianetti afirmou que a decisão visava “a continuidade, harmonia do grupo e a construção de uma equipa vencedora”, enquanto Ayuso reagiu: “agora sinto que é o momento de seguir um caminho diferente”. Estas declarações oficiais mascaram uma realidade mais tensa: a notícia foi tornada pública durante a Volta a Espanha e, segundo a Reuters, Ayuso acusou a Emirates de tentar “danificar a minha imagem” ao escolher esse momento, sinal de que a relação já estava desgastada e se tornara insustentável.
Desportivamente, a lógica é evidente. Na Emirates, Ayuso dividia o palco com Tadej Pogacar, cuja presença, calendário e objetivos ditam naturalmente a hierarquia. Mesmo com vários líderes, há apenas um número limitado de vagas protegidas numa corrida de três semanas. Aos 23 anos, já com um pódio na Volta a Espanha e um perfil que combina trepador de primeira categoria com um contrarrelógio em franca evolução, Ayuso passou a ver para si um patamar que o seu ambiente já não permitia alcançar.
Não queria mais ser o escudeiro de Pogacar, nem disputar com João Almeida ou agora com Isaac Del Toro o estatuto de segundo líder da Emirates. Então, por que motivo se junta a uma equipa com outras duas grandes referências? A resposta é simples: o que falta à Lidl-Trek é precisamente um homem para a CG. Skjelmose é talentoso, mas ainda não demonstrou o nível que Ayuso já apresentou.
A direção da Lidl-Trek é clara. “Juan é um dos jovens talentos mais brilhantes do ciclismo”, afirmou o diretor-geral Luca Guercilena. “Ele já é um dos melhores trepadores e contrarrelogistas do mundo… estamos comprometidos em dar-lhe todo o apoio de que precisa”. Ayuso alinhou pelo mesmo tom: “Entrar para a Lidl-Trek é o início de um novo capítulo importante na minha carreira… A mudança sempre traz nova energia e ambições”.
Este enquadramento é fundamental tendo em conta o plantel que ele vai encontrar. A Lidl-Trek transformou-se numa operação de “duas frentes”: clássicas e semi-clássicas de terreno acidentado com Pedersen e chegadas planas com Milan. O terceiro eixo – disputar a classificação geral em três semanas – sempre lhes escapara. A Emirates tem Pogacar para as clássicas e para a CG, bem como Almeida e Del Toro, a Visma dispõe de Van Aert para as clássicas e etapas e de Vingegaard, Yates, Jorgenson e Kuss para a CG. Agora, a Lidl-Trek quer ser a terceira super-equipa.
Um desafio ascendente
Ayuso chega a uma formação que, em julho de 2025, tomou a decisão difícil de deixar Pedersen de fora para centrar a Volta no projeto de sprints de Milan. Deixaram de lado um ciclista que vinha de quatro vitórias em etapas e da conquista da camisola dos pontos em favor da outra superestrela. Essa escolha dividiu opiniões: críticos notaram como a equipa perdeu uma peça fundamental na 1ª etapa e questionaram se a capacidade de Pedersen para controlar o caos teria feito a diferença. Mas, em termos de seleção, ficou claro que a Lidl-Trek está disposta a tomar decisões binárias se o percurso e o plano o exigirem. O próprio Pedersen reagiu de forma diplomática: “Estou completamente bem com o Johnny participar na Volta e estou feliz por ele”, disse na primavera. Mais tarde reforçou: “Fez-me perceber que a Volta a França não é tudo”.
Como se enquadra Ayuso? Parte-se de um princípio simples: tentar ganhar tudo de uma vez raramente resulta. A equipa que apoia um sprinter puro com um comboio completo – para etapas longas e planas, com ciclistas de grande capacidade aerodinâmica – não é a mesma máquina que conduz um líder da Geral através de abanicos, altas montanhas e finais em alto. Muitas formações de topo tentam gerir projetos paralelos, mas quase todas acabam por priorizar um de acordo com o percurso. A Volta a França 2026 ditará até onde a Lidl-Trek poderá ir.
O que torna plausível a ideia de “três frentes” é o perfil dos protagonistas. Pedersen já mostrou que se pode adaptar quando o programa aponta para fora de julho. “Alguns anos a equipa tem outros planos”, disse ele na Volta a Espanha. “Este ano não fui eu, não fui selecionado para a Volta, mas espero que possa ser no próximo ano”. Em vez de se lamentar, foi vencer noutros palcos.
Milan, por seu lado, não precisa de oito ciclistas para vencer sprints, apenas de um último quilómetro fiável e de um par de pernas frescas. Ainda é um investimento considerável, mas não um poço sem fundo. E Ayuso? Estará realmente disposto a aceitar um papel secundário, ou até terciário, em determinadas corridas?
Para a Lidl-Trek, a vantagem é evidente. Com Ayuso, a equipa entra na conversa do pódio do Tour para a próxima meia década. Somando o poder de Milan e o alcance de Pedersen, do empedrado de Roubaix às subidas de três semanas, a formação constrói um portefólio de vitórias ao longo de todo o calendário. Para o patrocinador, é uma narrativa perfeita: múltiplos pontos de contacto, mercados diversos, do início ao fim da época.
Desportivamente, quando o seu homem para as CG é uma verdadeira ameaça, toda a corrida se reorganiza. As fugas têm menos liberdade, os adversários gastam energia mais cedo, o sprinter encontra finais mais limpos porque o comboio é temido na aproximação e o capitão das clássicas conquista mais aliados nos dias de transição.
O risco cultural e táctico
Há, contudo, riscos. O primeiro é cultural. O comunicado de despedida da Emirates sublinhou a “harmonia do grupo” – uma escolha de palavras longe de ser inocente. Projetos de alta ambição falham quando se fragmentam em duas ou três equipas dentro do mesmo autocarro. A Lidl-Trek precisa de preservar o espírito que fez este verão dar resultados: a disponibilidade de Pedersen para apoiar um colega, a abertura de Milan para partilhar calendário e uma filosofia que não transforme o líder de uma CG numa nova aristocracia.
A chegada de Ayuso aumenta a pressão nesse ambiente, especialmente pela forma como saiu da Emirates. Há dúvidas legítimas sobre a sua capacidade de ser um verdadeiro ciclista de equipa – basta perguntar a João Almeida, que muitas vezes o viu desaparecer nos momentos decisivos da Volta a Espanha.
O segundo risco é puramente táctico. Um percurso para o Tour com muitas etapas planas no início e grandes montanhas no final gera tensão interna: sacrificar ciclistas para garantir que Milan está sempre bem colocado para várias etapas ou proteger Ayuso e arriscar perder sprints? Um planeamento cuidadoso ajuda, mas só se o plano resistir aos primeiros abanicos.
E no calendário para lá de julho? Aqui, a ambição de “competir em todas as frentes” pode transformar-se num trunfo. Pedersen continuará a liderar as clássicas empedradas na primavera, enquanto tenta finalmente vencer na Volta à Flandres ou em Roubaix. Ayuso terá como alvos a Tirreno-Adriatico, a Volta ao País Basco e a semana das Ardenas. Com o espanhol a apontar ao Tour, Milan pode brilhar em maio e setembro. O objetivo não é concentrar os três em julho todos os anos, mas garantir 10 a 12 vitórias de peso ao longo da época e chegar ao Tour com uma verdadeira oportunidade para a CG quando o percurso e a forma o permitirem.
Para Ayuso, trata-se também de controlo. No anúncio da equipa, uma frase resume a sua motivação: “Do exterior, pode-se ver que a equipa construiu uma forte identidade, com muita união e ambição… Parece um lugar onde posso dar o próximo passo no meu desenvolvimento, rodeado por ciclistas e pessoal que partilham os mesmos objetivos”.
É ao mesmo tempo um elogio e um desafio. A Lidl-Trek vai dar-lhe espaço, ele terá de apresentar a melhor versão de si próprio, aquela que mostrou no início da década de 2020. As vitórias na Volta e em provas de uma semana provam que o motor está lá. E, talvez mais importante, terá de se integrar plenamente na nova estrutura.
Se quisermos uma frase que resuma esta transferência, podemos citar o próprio Ayuso: “A mudança sempre traz nova energia e ambições”. Essa energia traduz-se em novas cores, novo carro, novas vozes no rádio e... sem Tadej Pogacar.
A ambição é clara: a Volta a França. A Lidl-Trek não o contratou para terminar em sétimo, quer que ele transforme o último domingo de julho num momento de suspense como há muito não acontece para a equipa. Isso não significa que Pedersen desapareça ou que Milan seja relegado para segundo plano, significa que a formação fará menos compromissos quando a oportunidade de lutar pela CG bater à porta.
O ciclismo caminha para a era das super-equipas e este é o retrato de uma equipa World Tour de topo em 2026: não um feudo de um só ciclista, nem um espetáculo disperso de talentos, mas três pilares de prioridades bem definidas, geridos com inteligência. Resta saber se este será o ambiente onde veremos o melhor de Juan Ayuso.