“Quando essa pessoa decide fechar a torneira, acabou” Diretores alertam: modelo financeiro do WorldTour está a ceder apesar da popularidade

Ciclismo
domingo, 16 novembro 2025 a 19:00
Vincent Lavenu
Crise no WorldTour: diretores desportivos alertam para fosso financeiro crescente, dependência de patrocinadores e ausência de direitos televisivos no ciclismo.
O WorldTour pode parecer mais saudável do que nunca à beira da estrada, mas dois dos diretores desportivos mais experientes alertam que os alicerces financeiros da modalidade começam a fissurar.
Em conversa com o La Dernière Heure, Valerio Piva, da Team Jayco AlUla, e o ex-gestor da Decathlon AG2R La Mondiale Team, Vincent Lavenu, argumentam que o modelo atual deixa demasiadas equipas expostas, excessivamente dependentes de patrocínios frágeis e cada vez mais afastadas de um pequeno núcleo de gigantes super financiados.
Para ambos, a frase chave é brutalmente simples: “O ciclismo é o único desporto cujos intervenientes não beneficiam dos retornos dos direitos televisivos, apesar de ser mais popular do que nunca.” Concluem, a uma só voz, tratar-se “de uma situação paradoxal”.
E esse paradoxo vê-se ao vivo: audiências recorde e corridas icónicas por um lado, equipas a fechar ou a fundir-se por falta de orçamento por outro.

“Este fosso cresce ano após ano”

Para Piva, o alargamento do fosso competitivo já não pode ser descartado como perceção. Está, diz, entranhado na estrutura do WorldTour. “Este fosso cresce ano após ano.”
O pelotão, argumenta, divide-se cada vez mais entre quatro ou cinco superpotências e o resto. A classificação final de quase todas as corridas confirma o desequilíbrio. “Há uma realidade da qual não podemos fugir: quatro ou cinco grandes equipas ganham a maioria das corridas. As outras têm de contentar-se com as migalhas, o que não incentiva os parceiros financeiros a continuarem a aventura com elas.”
E para quem vive fora desse círculo, a sobrevivência muitas vezes depende do humor ou das prioridades de um único patrocinador. “Mas quando essa pessoa decide fechar a torneira, acabou.”
Lavenu vê o mesmo quadro, mas a partir de outra perspetiva. Aponta para um desporto onde algumas estruturas são financiadas por Estados ou multinacionais, enquanto outras lutam diariamente para manter patrocinadores cada vez mais relutantes em abrir os cordões à bolsa. “Hoje, há algumas equipas apoiadas por Estados ou multinacionais que têm orçamentos ilimitados, e as outras que lutam para manter o apoio de patrocinadores.”
Num cenário já de si preocupante, Lavenu lembra o que mais o inquieta: as equipas não partilham o valor do produto que ajudam a criar. “O ciclismo não beneficia de direitos televisivos, nem de bilhética.”
A UCI distribui algum apoio à base da pirâmide, mas o francês sublinha os limites dessa ajuda. “Concede um pequeno subsídio de desenvolvimento aos clubes amadores.”
Ajuda, sim. Mas está longe de proteger equipas WorldTour de uma retirada súbita de um patrocinador ou de uma fusão que falhe.
No ciclocrosse cobram-se bilhetes para assistir a uma corrida. Será esse caminho viável para o ciclismo de estrada?
No ciclocrosse cobram-se bilhetes para assistir a uma corrida. Será esse caminho viável para o ciclismo de estrada?

Acesso livre, bilhética e o dilema do teto salarial

Com projetos a desaparecer e dezenas de ciclistas à procura de contrato, as conversas sobre atletas á beira de pendurar a bicicleta tornam-se inevitáveis. Uma das propostas mais discutidas passa por cobrar bilhetes em zonas específicas do percurso e redistribuir esses fundos pelas equipas. Piva e Lavenu levam a ideia a sério, mas nenhum a vê como solução universal.
Piva reconhece a lógica, desde que os fundos cheguem a quem faz o espetáculo. “Num mundo ideal, o dinheiro seria distribuído de acordo com os orçamentos das equipas. Mas os mais fortes teriam direito a pedir uma fatia maior do bolo porque proporcionam o espetáculo.”
Ou seja, mesmo um novo fluxo de dinheiro arrisca perpetuar a mesma hierarquia, a menos que surjam regras blindadas.
Já Lavenu tropeça de imediato nas questões culturais e práticas. Como cobrar bilhetes por algo que sempre foi livre e gratuito, que se encontra enraizado no espaço público? “Como é que vão controlar os espectadores? E o que é que vão dizer aos que lá estão desde a manhã?”
É categórico ao sublinhar que uma das maiores forças do ciclismo não deve ser sacrificada: “Retirar este acesso livre não me parece uma boa ideia.”
Para o francês, a proximidade com o público é parte da identidade do ciclismo. Fechar essa porta seria precisamente aquilo que equipas e organizadores tentam monetizar.
Isso leva-o ao capítulo das despesas. Se aumentar receitas é difícil, talvez controlar custos seja a porta mais realista. Mas também aqui vê obstáculos claros. “Podíamos considerar um teto salarial, definir um limite para os salários”, admite. “Mas como é que se vai impor isso a um patrocinador financiado por um Estado, como a UAE?”
Sem uma autoridade central forte e um compromisso transversal, um teto salarial seria inofensivo para os maiores e limitador para quem tem menos.

Um WorldTour construído na popularidade, não na proteção

Ambos regressam ao mesmo paradoxo: o ciclismo nunca foi tão popular, mas quem corre e dirige as equipas continua sem a proteção estrutural que existe noutros desportos globais.
O modelo atual pede aos patrocinadores que assumam praticamente todo o risco e confia que se mantenham leais. Pede às equipas intermédias que lutem por relevância num calendário onde, como diz Piva, “quatro ou cinco grandes equipas ganham a maioria das corridas.” Pede aos ciclistas e ao staff que construam carreiras em estruturas que podem desaparecer quando um benemérito decide “fechar a torneira”.
E, enquanto isso, como sublinham Piva e Lavenu, “o ciclismo é o único desporto cujos intervenientes não beneficiam dos retornos dos direitos televisivos.”
Para ambos, a conclusão é inevitável: se o WorldTour não encontrar forma de partilhar o valor que produz de modo mais justo e previsível, o paradoxo continuará e mais equipas pagarão o preço de um sistema que nunca protegeu verdadeiramente a sua existência.
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