Todas as primaveras, a Flandres transforma-se no centro do mundo ciclista. As estradas estreitas, os paralelos históricos e os bergs castigadores tornam-se palco da mais sagrada das Clássicas: a Volta à Flandres. Mais do que uma corrida, é uma celebração da identidade flamenga — uma epopeia onde o suor e a glória se cruzam nas encostas do Oude Kwaremont, do Koppenberg e do Paterberg.
Criada em 1913 por Karel Van Wijnendaele como uma afirmação de orgulho flamengo, a Ronde nasceu para exaltar o povo e desafiar as elites francófonas. Desde então, sobreviveu a duas guerras mundiais, pedalou sobre cicatrizes históricas e nunca perdeu o seu carácter de luta.
Mesmo sob ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial, a corrida foi disputada. Era mais do que uma prova: era um ato de resistência. O percurso foi evoluindo com o tempo, mas a essência manteve-se. Quando o asfalto começou a substituir os paralelos, os organizadores foram buscar novas colinas e mais sofrimento, como o Koppenberg — um muro onde até Merckx teve de desmontar.
A lista de vencedores é um verdadeiro mural da história do ciclismo. De Achiel Buysse a Museeuw, de Boonen a Cancellara, e agora Van der Poel e Pogacar — todos escreveram capítulos épicos nos paralelos flamengos. Sete homens têm três vitórias na Flandres. Mathieu van der Poel pode tornar-se o primeiro a erguer os braços pela quarta vez. Do outro lado, Pogacar, que venceu com uma arrancada brutal no Kwaremont em 2023, quer repetir o feito.
Mas não são só os nomes que marcam a corrida. São as condições: vento cortante, chuva gelada, incidentes bizarros. Quem esquece o acidente no Koppenberg em 1987 ou o sprint de Matt Brammeier por uma carga de cerveja?
Desde 2004, a versão feminina da Volta à Flandres tem vindo a ganhar o seu espaço com merecido protagonismo. De Zoulfia Zabirova a Marianne Vos, passando por Lotte Kopecky — a corrida também se tornou símbolo de luta, talento e perseverança no pelotão feminino. A inclusão do Koppenberg no percurso6 em 2022 confirmou que a dureza da Flandres é para todos.
A Volta à Flandres é o auge da chamada "Semana Santa" do ciclismo. Uma semana antes de Paris-Roubaix, é aqui que os puncheurs, os especialistas de clássicas e os gladiadores dos paralelos se enfrentam com tudo. É o Monumento onde a dureza não é só desejada — é esperada.
Quando o pelotão rasgar os bergs no domingo e cruzar a meta em Oudenaarde, saberemos se Van der Poel fará história ou se outro nome se eternizará entre os deuses da Flandres. E quando os últimos copos de cerveja forem brindados, já se pensará em abril de 2026.
Porque na Flandres, os paralelos falam. E a Flandres... a Flandres nunca esquece.