ENTREVISTA| Bernardo Gonçalves fala sobre terminar a carreira nos Campeonatos Nacionais, sobre o valor das suas experiências pelo mundo fora e sobre os dogmas associados à performance no ciclismo

Ciclismo
sábado, 22 junho 2024 a 21:15
bernardo goncalves
Bernardo Gonçalves é um ciclista português de 25 anos, natural de Ourém e vai terminar a carreira, este domingo, na prova de fundo dos Campeonatos Nacionais. O caminho de carreira de Gonçalves não é o mais tradicional para um ciclista português, com passagens pela Ucrânia, pelo Canadá e até por uma breve ligação a uma formação paraguaia. Bernardo Gonçalves vai representar a Óbidos Cycling Team nos Campeonatos Nacionais falou ao CiclismoAtual sobre as suas expetativas para este fim de semana, sobre as memórias da sua carreira e sobre o que o futuro lhe reserva.
A primeira corrida à qual Bernardo Gonçalves se lembra de assistir foi a vitória de Sérgio Paulinho na 10ª etapa da Volta à Espanha. Foi nesse momento que começou a acompanhar a modalidade.
"Eu era uma daquelas pessoas que comprava o Pro Cycling Manager, por isso eu tenho aí uma lista de muitos desde 2007 até 2016, quase até à universidade"
A ligação à prática do ciclismo ficou mais forte alguns anos depois quando Bernardo recebe uma bicicleta, como prenda do avô. Ao princípio, fazia umas "voltas" com o irmão. Quando este último começou a trabalhar, Bernardo continuou a divertir-se com a bicicleta. Nessa fase da vida, a ligação mais formal de Bernardo Gonçalves com o desporto não era através do ciclismo, mas sim do atletismo.
"Eu fazia atletismo na altura estava a correr no Clube de Atletismo de Fátima e tive duas ruturas musculares e basicamente no processo de recuperação a única coisa que eu podia fazer era ciclismo. Para uma coisa que eu gostava muito era de bater os pontos no Strava. Comecei a treinar cada vez mais. E acho que foi em 2014. Fui fazer um médio fundo da Lousã e no final dessa prova, disse à minha mãe que queria começar no ciclismo"
O atletismo proporcionou a Gonçalves uma condição física muito boa, deu-lhe experiência em trabalho que requer "horas e horas", cujos resultados demoram a aparecer e capacidade de sofrimento, tudo aspetos importantes para quem envereda pelo ciclismo profissional.
O jovem corredor referiu que a decisão de terminar a carreira já vinha a ser discutida a algum tempo e que algumas mudanças nos domínios pessoal e profissional o levaram a optar por terminar a sua experiência como ciclista profissional no Campeonato Nacional.
"Por exemplo, ontem fiz o meu último treino assim mais intenso, que é quase que chegamos ao final 'Ok, está feito. Espero não sofrer, não fazer outra vez, dez vezes não sei quantos, estes intervalos assim meio malucos".
Num tom mais sério, Bernardo fala do que sente à medida que se aproxima da sua última corrida.
"É mais uma sensação de dever cumprido. Chegámos ao final. Chego ao final sabendo que estou, se calhar, na minha melhor condição física de sempre, que passei por conseguir ultrapassar dogmas e preconceitos e consegui basicamente terminar o ciclismo, com um corpo ou com uma condição física, a que nunca esperava chegar, por isso, agora vamos ver o que acontece lá."
Quanto aos dogmas e preconceitos, o ciclista que irá representar a Óbidos Cycling Team este fim de semana falou sobre a preocupação com o peso e com a alimentação. Referiu que nos dias de hoje deverá ter mesmo mais 10 a 15 quilos do que há dois anos.
"Mas o que é verdade é que quando quando fazemos um teste e a primeira coisa que se faz é a medição das pregas cutâneas, ou da massa gorda ou assim. Parece que é a única coisa que importa quase e quando chegamos a um ponto em que vemos que a nossa, que a minha parte fisiológica não dá para virar muito mais, nós tentamos otimizar a performance e normalmente, as pessoas falam muito dos watts por quilo e, ou seja, se as Watts não sobem são os quilos que têm de descer, supostamente. Foi por causa um pouco da universidade, do mestrado que fiz e da empresa que tenho que consegui ultrapassar isso porque basicamente consegui provar-me a mim mesmo que essa forma de trabalhar não era correta".
Bernardo Gonçalves acrescenta que as simulações de corrida foram também algo que lhe permitiu aferir verdadeiramente um método certo de avaliar a sua condição física. Destacou também a abordagem das próprias corridas, referindo que nos últimos dois anos passou a ter uma postura menos metódica, mais descontraída voltada para "aproveitar a experiência e nota que foi nesse período que começou a ter as suas melhores performances.
"Os resultados podem aparecer e é muito fixe ter bons resultados e a equipa ganhar, etc. Mas o que é verdade é que normalmente os melhores momentos são aquelas experiências em que tu estás em algum sítio e pensas: 'Quem diria, se me dissessem há um ano ou há seis meses que estaria a fazer uma esta prova ou aqui neste sítio, epá, dizia que era mentira'"
Bernardo assinala que nunca venceu uma corrida nos últimos nove anos (desde os tempos de júnior) e diz mesmo que é "provavelmente o único ciclista, a nível continental a nunca levantar os braços", uma estatística que o deixa contente, porque as experiências foram o que mais procurou no ciclismo
"Acho que com isto aprendi mais coisas, recebi mais contactos, tenho mais conexões e mais experiência a nível internacional que muitos ciclistas a nível nacional, que possam ter os resultados ou assim. Se me perguntares como é que uma equipa funciona no estrangeiro, eu posso dizer tudo, até orçamentos."
Procurou sempre obter um bom "know how" dentro do ciclismo, nomeadamente porque não sabia quanto tempo ia durar a sua carreira. O ciclista de 25 anos recordou a altura em que passou de júnior para sub-23.
"Ninguém falava, mas sabia-se que havia aqui coisas, provavelmente, doping instaurado no ciclismo português. Portanto, um dos meus primeiros objetivos foi logo sair para fora para garantir que não ficasse preso aqui numa equipa. Quer dizer, eu ainda tentei entrar nas equipas e a resposta foi sempre não. E felizmente foi sempre não, porque se tivesse entrado numa equipa de ciclismo na altura, provavelmente não tinha durado até agora, provavelmente com o burnout só de ver o que se estava a passar nas equipas na altura".
No ano de 2020, Bernardo Gonçalves corre por uma equipa do Paraguai, a Massi Vivo-Conecta UIt Paraguay. Como é que chegou à formação sul-americana? Para saber isso, precisamos de recuar à Sexta-Feira Santa de 2018. O ciclista de então 19 anos acabara três corridas em duas semanas: a Clássica da Arrábida, a Volta ao Alentejo e a Clássica Aldeias do Xisto. Nessa sexta, recebeu uma chamada de uma amiga, que conhecia o Diretor Desportivo da Ginestar-ULB Sport. "A minha amiga liga-me e pergunta-me se eu quero ir correr para Espanha, mas se quiser ir correr para Espanha, tenho de me pôr no avião para Marrocos em três dias". Aos 19 anos, Bernardo completou uma corrida de 10 dias, sem dias de descanso, e na qual alinharam nomes como Filippo Pozzato e Jakub Mareczko.
No final de 2019, surgiu a oportunidade de dar o salto para uma equipa continental, devido a um contacto com Luc Shuddinck, então Diretor Desportivo da Massi Vivo-Conecta UIt Paraguay. 2020 foi o ano da pandemia da COVID-19 e Bernardo acabou por correr apenas os campeonatos nacionais com as cores da formação paraguaia. Ainda assim, teve a possibilidade de passar um mês nos Pirenéus, onde estava sediada a formação do Paraguai.
Em 2021, Shuddinck ruma à Lviv Cycling Team, equipa ucraniana sediada na Bélgica e leva o jovem de Ourém consigo. Para além de Shuddinck, Bernardo Gonçalves também destaca a importância de Pascual Orengo Lopez, Diretor Desportivo da Ginestar em 2019, na sua carreira.
Em relação aos países onde mais gostou de correr, o jovem de 25 anos destaca, por motivos diferentes, a Holanda, a Grécia e Marrocos. Gonçalves admite que as corridas neerlandesas foram as que tiveram mais impacto em si e explica porquê, com um bom sentido de humor.
"Na Holanda, aquilo... Imagina, a UCI fala muito de problemas com a segurança dos corredores. As pessoas têm de ir fazer as provas da Holland Cup [Taça da Holanda] depois venham falar comigo sobre a segurança"
Já a Grécia está mais emocionalmente ligada ao ciclista português, que realizou diversas corridas em solo grego, nomeadamente o Tour of Rhodes e a Volta à Grécia entre 2022 e 2024.
"Sempre gostei muito de ir à Grécia, porque enfim, já estive em Rhodes [Ródes] três anos e são praticamente portugueses. E o clima é a mesma forma de pensar um pouco mesmo, por isso, é sempre um país que é sempre um bocado especial para mim".
Já Marrocos destaca-se por uma experiência de Bernardo no Saara, em 2019. "Estive no Saara, ou seja, no Saara Ocidental, ou seja a sul de Marrocos para fazer uma prova. Essa prova foi também muito interessante porque éramos tipo um pelotão de 50, 60 ciclistas, assim, completamente plano com o vento lateral. Portanto, e basicamente uma equipa tinha 20 corredores que eram três equipas da seleção nacional de Marrocos, por isso era tipo um terço do pelotão da mesma equipa. Essa aí foi se calhar das provas mais duras, apesar de o nível do pelotão não ser muito alto. Como tens uma equipa com 20 corredores, quase, é interessante para a dinâmica de corrida."
Quanto à melhor corrida da carreira, Bernardo Gonçalves teve alguma dificuldade em responder mas acabou por destacar a etapa 5 da Volta à Bulgária do ano passado, já com as cores da XSpeed United. Destacou esta corrida, uma vez que demonstrava não só a sua própria evolução, mas também a da formação canadiana que conquistou a primeira vitória UCI, em cinco anos.
"Essa aí foi, se calhar, especial porque literalmente todos os dias a fazer leadouts a três quilómetros do final e a trabalhar para o Red Walters, um atleta de Granada, que acabou por ganhar uma das etapas, por isso, essa aí foi das melhores. porque aí literalmente vi que passei de um corredor que provavelmente não sabia fazer nada para um corredor que conseguia fazer quase tudo por um líder."
Esta vitória marcou também o primeiro triunfo de um ciclista de Granada numa corrida UCI. Bernardo recorda que protegia Walters até aos últimos dois ou três quilómetros e chegou a "rebocá-lo" em momentos de maior dificuldade, nomeadamente na etapa 2 da prova búlgara.
"Uma das mais marcantes foi ele elogiar a minha descida. A maior parte das pessoas não sabe, mas eu a descer, tecnicamente, sou um desastre e ele dizia que eu descia mesmo muito depressa e que eu tinha um sprint". O ciclista de 25 anos enfatizou o valor deste elogio, ao reconhecer que "a sprintar com 99% do pelotão internacional, eu perco".
E Red Walters é também quem Bernardo Gonçalves considera ser o melhor ciclista com quem correu e também aquele que mais o surpreendeu. Isto porque aquando da chegada do ciclista de Granada à XSpeed, o português pensou que Walters era essencialmente um influencer, devido ao seu número elevado de seguidores nas redes sociais " e afinal ele até sabia andar de bicicleta muito bem e está a provar este ano e o ano passado provou que é mesmo corredor, pelo menos, do nível continental".
Quanto ao futuro, as coisas já apresentam uma certa clareza. Bernardo Gonçalves tem um Mestrado em Engenharia Mecânica e é co-fundador da AeroEdge, empresa destinada à otimização do desempenho de ciclistas e de triatletas.
"Eu formei a empresa há dois anos com um sócio, a empresa é registada no Canadá e eu tenho um sócio que é australiano e vive no Canadá, é um dos managers da minha equipa de ciclismo. Eu apresentei-lhe um pouco o que andava a fazer e ele achou muito interessante e criámos esta empresa".
No contexto da AeroEdge, Bernardo refere que o seu trabalho, neste contexto é mais o de um engenheiro de performance, tentar perceber todos os fatores que afetam o desempenho dos atletas, sobretudo do ponto de vista externo, onde a engenharia entra em ação. Uma abordagem que o ciclista de 25 anos nota que tem sido mais procurada no triatlo.
De resto vai continuar a trabalhar com a XSpeed, em funções mais "behind the scenes", como o próprio descreveu. Bernardo destacou o trabalho com triatletas e referiu, num tom bem disposto, que "Como tenho andado a trabalhar com muita gente do triatlo, provavelmente tenho de experimentar fazer um triatlo ou outro"
Quanto aos Campeonatos Nacionais, o ciclista que irá representar a Óbidos Cycling Team destacou a prova de contrarrelógio, na qual fez 10º, em 2023. Admitiu que repetir o resultado seria ótimo, mas deixou uma ressalva.
"Para mim é mais uma coisa de realização pessoal mesmo, para ter os dados e provar a mim mesmo que tudo o que eu tenho andado a fazer até agora resultou e que afinal a progressão continuou e que estou mesmo a terminar na minha melhor condição física."
Já na corrida de fundo, Bernardo não coloca um objetivo específico. "É só mesmo para terminar da melhor forma, terminar em casa a carreira e na segunda-feira é um dia diferente", conclui.
Bernardo Gonçalves concluiu o Campeonato Nacional de contrarrelógio em 14º lugar. O ciclista de Ourém reagiu no Instagram aos resultados, apresentando alguns dos seus números. Admite que se divertiu e que não podia ter feito melhor, elogiando o seu "pacing" e posição na bicicleta.
Este domingo, Bernardo Gonçalves alinha na última corrida da sua carreira. Representará a Óbidos Cycling Team e terá no carro de apoio, Paulo Figueiredo, atual Diretor Desportivo da Óbidos e Diretor Desportivo da Jorbi-Team José Maria Nicolau, em 2017, quando Bernardo começou a aventura no ciclismo.

Solo En

Novedades Populares