Tom Dumoulin fez história em 2017, tornando-se o primeiro neerlandês a conquistar a
Volta a Itália. Excelente trepador e especialista em contrarrelógio, tinha todas as armas para continuar a acrescentar Grandes Voltas ao palmarés. No entanto, após 22 vitórias como profissional e um pódio na Volta a França em 2018, a “Borboleta de Maastricht” anunciou inesperadamente a retirada no final da época de 2022, aos 31 anos.
Sentir-se esgotado apesar de uma carreira brilhante
Numa recente
entrevista ao El Tiempo, Dumoulin abriu o jogo sobre as razões que o levaram a tomar essa decisão, sublinhando que já não se sentia dono da própria carreira. “Nos últimos anos da minha carreira, lutei com a pressão, as viagens e a estrutura. Não tinha controlo sobre a minha própria carreira. A minha equipa, os patrocinadores, os media, os adeptos… todos queriam algo de mim, mas ninguém perguntava: “
Tom, o que é que tu queres?””.
A lenda neerlandesa revelou que a decisão de se retirar foi extremamente difícil e que a adiou até perceber que tinha mesmo de acontecer. “Eu não queria tomar esta decisão, tentei evitá-la durante dois anos, mas sentia-me fora de controlo e já não estava a viver o meu sonho. Já não mandava na minha própria carreira.”
Acrescentou que a pressão da competição ao mais alto nível, exigências de treino, atenção mediática e expectativas do staff, o esgotou física e mentalmente. “Ao mais alto nível, a rodas com os melhores no Giro, no Tour e na Vuelta, a pressão é imensa. Não tive outra opção senão afastar-me.”
Refletindo sobre o ciclismo atual, Dumoulin destacou os avanços tecnológicos e organizacionais: “O ciclismo mudou muito. As equipas estão mais estruturadas, os objetivos são mais claros e o nível é incrível. Ciclistas como Remco Evenepoel,
Jonas Vingegaard e
Tadej Pogacar sobem montanhas a velocidades impressionantes.”
Contudo, alertou que o ciclismo moderno corre o risco de perder liberdade e autonomia, com equipas cada vez mais rígidas nos métodos. “Está a tornar-se um desporto em que os corredores cumprem ordens, e as necessidades, sonhos e caráter individuais podem ser ignorados. Encontrar o equilíbrio entre estrutura e liberdade pessoal é difícil, mas quem o consegue, como Evenepoel e Pogacar, otimiza o rendimento e alcança resultados excecionais.”
Domínio de Pogacar e o desafio para os rivais
Para muitos, Tadej Pogacar é atualmente imbatível, sobretudo nas Grandes Voltas. Dumoulin admite que partilha essa opinião, argumentando que isso torna algumas corridas um pouco aborrecidas, em linha com outro ex-corredor. “Neste momento, sim. Adoro o Pogacar. É um ciclista incrível, talvez o melhor da história. É incrível vê-lo na bicicleta. Mas, sinceramente, algumas corridas são aborrecidas. A 18 quilómetros da meta, vês um ciclista isolado e não há tensão até à meta. Espero que mais ciclistas se aproximem dele.”
Pogacar tem sido constantemente comparado ao grande Eddy Merckx. Para Dumoulin, é difícil fazer tal comparação, considerando que competiram em épocas muito diferentes. “Cada geração é diferente. Não vi o Eddy Merckx correr, mas o que o Pogacar está a fazer é incrível. Pode ser o melhor de sempre, embora seja difícil afirmá-lo de forma definitiva.”
Ainda assim, quando questionado se conseguiria bater Pogacar no seu melhor, Dumoulin foi taxativo. “Nunca. Não, não, não. Ele é simplesmente bom demais para mim.”
O último triunfo de Dumoulin foi no Campeonato Nacional de Contrarrelógio de 2021
Lições do passado
Recordando a Volta a Itália de 2017, que venceu à frente de
Nairo Quintana, Dumoulin evocou aquela que foi, provavelmente, a etapa mais dura para si. “Lembro-me de estar de camisola de líder na última semana. O Nairo teve um bom dia, eu tive um mau. Perdi a camisola na etapa do Piancavallo. Ainda faltavam etapas de montanha e o contrarrelógio, mas nesse dia pensei que seria difícil vencê-lo.”
O grande momento dessa edição foi, sem dúvida, o incidente intestinal sofrido por Dumoulin. Na etapa 16, Dumoulin começou a sentir fortes problemas gastrointestinais e teve de parar urgentemente a cerca de 30 km da meta. Essa paragem biológica custou-lhe mais de 2 minutos para os principais rivais, Quintana e Nibali, embora tenha ainda assim acabado por conquistar a geral.
Questionado se as pessoas ainda lhe recordam o episódio, a resposta é obviamente sim. “Sim, ainda me lembram disso. Ri-me mais tarde, mas foi duro. Tinha comido demasiado ao pequeno-almoço, e o meu sistema digestivo deixou claro que eu tinha de parar. Claro que me custou tempo. Contudo, mantive-me determinado, mostrei espírito de luta e não perdi a camisola rosa nesse dia. Mostrou que estava pronto para lutar pelo título até Milão.”
Dumoulin guarda excelentes memórias da Colômbia, país que visitou várias vezes e onde até chegou a treinar. “Treinei nas suas estradas e não conseguia acreditar em como o ciclismo é popular por lá, especialmente aos fins de semana, com os amadores. A Colômbia tinha, nessa altura, alguns dos melhores ciclistas do mundo, como Rigoberto Urán e Nairo Quintana.”
Por fim, Dumoulin refletiu sobre as lições mais amplas do desporto. “O desporto desempenhou um papel importante na minha vida. Ensinou-me a ser forte física e mentalmente, disciplinado e lutador. Olhem para o Egan Bernal: recuperou de contratempos e mostra não só talento atlético, mas também força mental. É essa a mensagem que quero passar.”