OPINIÃO: Quem protege as ciclistas? A Volta à Romandia Feminina revela o ponto cego do ciclismo.

Ciclismo
domingo, 17 agosto 2025 a 12:43
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A Volta à Romandia Feminina deveria afirmar-se como um marco de relevância para o ciclismo feminino e para a modalidade em geral. Contudo, a edição deste ano transformou-se num autêntico desastre. Logo no dia de abertura, seis das maiores equipas do WorldTour foram desclassificadas por se recusarem a cumprir as novas regras a serem testadas pela UCI, relacionadas com um sistema de localização por GPS. Entre as formações afastadas estavam a Team Visma | Lease a Bike, AG Insurance - Soudal, EF Education-Oatly, Canyon//SRAM Racing, Team Picnic PostNL e Lidl-Trek, expulsas ainda antes da corrida começar. O que parecia uma questão logística rapidamente se revelou um conflito de fundo entre equipas, organizadores e a entidade reguladora. No meio da disputa, quem acabou por pagar o preço foram as ciclistas e os adeptos.
Nenhum dos três intervenientes principais - equipas, UCI e organização - assumiu a responsabilidade. Cada parte esqueceu a razão essencial que motivou a introdução deste projeto, revelando uma preocupante falta de responsabilidade no ciclismo atual.
O comunicado da organização espelha a falha: "Consideramos lamentável e infeliz, para dizer o mínimo, que não tenha sido possível encontrar uma solução positiva". Uma frase que resume, por si só, a incapacidade de comunicação e de compromisso que marcou todo o processo. Em vez de se unirem em torno da segurança, voltou a imperar a divisão.
Já a UCI apontou o dedo diretamente às equipas: "A decisão destas equipas de se oporem às regras específicas do evento é surpreendente e prejudica os esforços da família do ciclismo para garantir a segurança de todos os ciclistas no ciclismo de estrada através do desenvolvimento desta nova tecnologia”. A mensagem foi clara: ninguém, nem organismo dirigente, nem organizadores, nem equipas, quis admitir que podia e devia ter feito melhor.

Afinal, o que é o novo sistema de GPS?

A tecnologia foi introduzida como parte de um esforço alargado para reforçar a segurança nas corridas. O objetivo é simples: permitir a localização imediata de ciclistas em caso de queda, sobretudo em condições adversas ou em terrenos de difícil acesso. A sua criação não surgiu do nada. Quase há um ano, o ciclismo foi abalado pela tragédia de Muriel Furrer, jovem suíça de apenas 18 anos, que perdeu a vida nos Campeonatos do Mundo de Zurique.
Durante a prova de estrada júnior feminina, Furrer saiu da estrada e caiu numa zona arborizada, em plena chuva torrencial. Sofreu um grave traumatismo craniano e, apesar de transportada de helicóptero para o hospital, não resistiu. O mais doloroso é que a sua localização demorou demasiado tempo a ser descoberta. Se um sistema de GPS estivesse em uso, talvez tivesse sido encontrada mais rapidamente e pudesse ter recebido cuidados médicos vitais. Ninguém pode garantir que sobreviveria, mas a probabilidade teria certamente aumentado.
Foi precisamente para evitar situações como esta que o sistema foi proposto. Mas, em vez de se unirem numa causa óbvia, as principais figuras do ciclismo mergulharam num impasse que mergulhou uma das mais prestigiadas corridas femininas em total descrédito.
A morte de Muriel Furrer foi um choque profundo. A jovem, medalhada de prata nos campeonatos nacionais suíços, era descrita pela federação como "uma jovem de coração quente e maravilhosa, sempre com um sorriso no rosto". A UCI falou de "uma ciclista com um futuro brilhante à sua frente". A British Cycling acrescentou que era "uma jovem ciclista dedicada, com um futuro brilhante pela frente e que fará muita falta ao mundo do ciclismo". Mensagens de tributo chegaram de todo o lado, de equipas como a Movistar a organismos governamentais. Honrar a sua memória deveria traduzir-se em medidas concretas para aumentar a segurança no pelotão.

O fracasso do projeto-piloto

No início deste mês, a UCI apresentou o projeto GPS como um passo inovador em colaboração com a campanha SafeR: "Isto representa um importante passo em frente para garantir a segurança das mulheres ciclistas, e a UCI continuará a trabalhar em estreita colaboração com os organizadores de eventos e todas as partes interessadas para implementar esta tecnologia mais amplamente nas próximas épocas".
Na teoria, parecia um avanço. Mas a realidade foi bem diferente. As equipas foram informadas de que teriam de instalar os dispositivos por conta própria e de que seriam responsáveis por perdas ou danos em caso de queda, algo que dificilmente seria aceite sem resistência. Não houve abertura para compromisso: nem partilha de responsabilidades, nem cobertura de seguros, nem apoio técnico. Resultado: confronto, rigidez, e seis equipas afastadas da corrida. O prejuízo foi enorme, a prova ficou esvaziada e a credibilidade do ciclismo sofreu novo golpe.
O sinal transmitido é devastador. Indica que, quando surge uma inovação de segurança, o ónus recai sobre ciclistas e equipas, em vez de ser assumido como um esforço coletivo. Revela que, quase um ano depois da morte de Muriel Furrer, o desporto pouco ou nada aprendeu.

Responsabilidade partilhada, mas falhada

É certo que seria injusto apontar toda a culpa a apenas uma entidade. A UCI errou pela rigidez e pela falta de visão. Os organizadores falharam por não encontrarem uma solução que mantivesse as principais equipas em prova. E as próprias equipas também não ficam isentas: ao invés de procurar diálogo, entraram em rota de colisão. Em última análise, todo o sistema falhou.
O ciclismo gosta de se apresentar como uma comunidade, uma "família" unida por riscos e pelo amor à estrada. A UCI recorreu mesmo a essa expressão, mas uma família não coloca disputas acima da segurança. Uma família não esquece a perda de uma jovem atleta. Muriel Furrer merecia mais, e o pelotão de hoje merece mais.
Que o projeto-piloto destinado a proteger ciclistas tenha acabado por transformar a Volta à Romandia Feminina numa farsa é inaceitável. Mais do que um episódio infeliz, foi um escândalo. O desporto não pode continuar a tratar a segurança como um jogo de empurrões entre entidades que recusam assumir responsabilidades. Se o ciclismo quiser, de facto, honrar a memória de Muriel Furrer, terá de ir além de declarações formais e minutos de silêncio. Será preciso agir e mudar.
Enquanto isso não acontecer, o caos vivido nesta Volta à Romandia Feminina ficará como símbolo de um ciclismo que diz preocupar-se com a vida das suas atletas, mas que, na prática, nem sequer consegue chegar a acordo sobre como as proteger.
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