Um crime organizado" e um "cartão amarelo" para os organizadores: A Volta a Espanha 2025 nas palavras dos ciclistas e dos especialistas

Ciclismo
segunda-feira, 15 setembro 2025 a 13:00
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A Volta a Espanha 2025 deveria ter encerrado com o tradicional desfile em Madrid, um dia de celebração onde o pelotão brinda com champanhe, os sprinters disputam a vitória final na capital e as cerimónias de pódio ficam imortalizadas pelas câmaras. Em vez disso, o desfecho transformou-se num cenário insólito: Jonas Vingegaard foi coroado campeão geral no parque de estacionamento de um hotel, longe da pompa habitual. O cancelamento da 21ª etapa devido a protestos pró-palestinianos marcou o epílogo mais caótico de sempre para a corrida espanhola. Para ciclistas, equipas e organizadores, foi um final surreal e inquietante, que coroou três semanas pautadas por neutralizações, etapas encurtadas e o debate sobre o papel do desporto perante a política.
Desde o primeiro dia, a edição de 2025 revelou-se atípica. Os protestos, centrados na presença da Israel - Premier Tech, obrigaram a mudanças constantes de itinerário. O contrarrelógio coletivo da 5ª etapa foi bloqueado, a 11ª etapa neutralizada sem vencedor, a 13ª etapa, com subida do Angliru foi alterada, a 16ª etapa viu o seu ponto decisivo ser eliminado, a 18ª etapa foi reduzida para metade e, por fim, a 21ª etapa foi abandonada em pleno Madrid. Para todos os intervenientes, a gravidade da situação foi evidente, mas a interpretação sobre o que significava e sobre como deveria ter sido gerida dividiu opiniões.

Vozes do pelotão

No meio do caos, as reações dos ciclistas foram contundentes. Kamiel Bonneu, da Intermarché - Wanty, completou as três semanas e desabafou no X: "Isto não foi um protesto, foi um crime organizado. Se o vosso objetivo é a paz, façam-no pacificamente". A sua indignação resumiu o sentimento de muitos no pelotão, que viram a linha entre manifestação política e sabotagem ser ultrapassada.
O vencedor final, Jonas Vingegaard, também não escondeu a frustração. No final em Madrid, declarou: "É uma pena que um momento tão intemporal nos tenha sido tirado. Estou muito desiludido com isso. Estava ansioso por festejar esta vitória com a minha equipa e os adeptos. Toda a gente tem o direito de protestar, mas não de uma forma que influencie ou ponha em causa a nossa carreira".
Ainda assim, o dinamarquês mostrou alguma empatia nas primeiras declarações, reconhecendo a causa maior: "Já disse que compreendo o que se está a passar e porque é que eles estão a protestar. Só gostava que o tivessem feito noutro sítio, não vou dizer isso, para podermos fazer uma corrida em condições. Mas eles estão a fazê-lo por uma razão, porque encontraram aqui uma plataforma que não conseguiram encontrar noutro lugar". Palavras que revelaram a dualidade sentida pelo pelotão: a consciência da gravidade do conflito em Gaza, mas também o desconforto com métodos que punham em risco a sua segurança.
Para Matthew Riccitello, a jovem revelação da Israel - Premier Tech, que conquistou a Camisola Branca e terminou em quinto lugar na geral, o peso emocional foi enorme. "Para ser sincero, tem sido muito difícil para todos nós. Não só a nossa equipa, mas todo o pelotão. Não tenho usado muito o telemóvel, só quando falo com a família e os amigos. Têm sido três semanas muito duras".

O posicionamento político

Do lado institucional, a resposta do Governo espanhol foi tudo menos neutra, foi tendenciosa, o que inflamou a situação. A Ministra da Educação, Formação Profissional e Desportos, Pilar Alegría, afirmou durante a corrida: "Considero fundamental que a Vuelta se possa realizar, tal como se realizaram outras grandes provas internacionais. Seria uma má notícia se uma competição desta envergadura tivesse de ser suspensa. O que estamos a ver nestes dias com as manifestações, na minha opinião, é compreensível. A sociedade espanhola não pode nem deve manter-se neutra face ao que está a acontecer em Gaza. O desporto também não pode virar as costas à realidade que o rodeia".
A sua posição procurou reconhecer simultaneamente a importância da Vuelta como evento cultural e a legitimidade do protesto face à crise humanitária. Contudo, no pelotão, alguns sentiram que este tipo de declarações contribuía para alimentar riscos desnecessários, encorajando implicitamente a continuação das ações.

A inação da UCI

E a União Ciclista Internacional? O organismo liderado por David Lappartient emitiu uma nota oficial onde condenava os protestos, mas reiterava a neutralidade: "A União Ciclista Internacional (UCI) condena firmemente as acções que levaram à neutralização da 11ª etapa da Vuelta Ciclista a España. A UCI reitera a importância fundamental da neutralidade política das organizações desportivas no âmbito do Movimento Olímpico, bem como o papel unificador e pacificador do desporto. Os grandes eventos desportivos internacionais encarnam um espírito de unidade e de diálogo, ultrapassando as diferenças e as divisões".
No entanto, para além da retórica, pouco foi feito em termos práticos. Equipas e ciclistas sentiram que grande parte da responsabilidade recaía apenas nos organizadores da Vuelta. A ausência de reforços de segurança foi uma das críticas mais recorrentes.
Figuras históricas do ciclismo não pouparam nas palavras. Jan Ullrich lamentou a falta de firmeza: "Não há uma verdadeira espinha dorsal. Deixaram a Israel - Premier Tech continuar e voltaram a colocar a decisão na equipa". Rick Zabel foi igualmente contundente: "Os organizadores não estão a cobrir-se de glória. O facto é que a imagem da Vuelta já sofreu muito".
Patrick Lefevere, conhecido pela frontalidade, criticou o que considerou ser uma negligência básica: "Pode-se perguntar se os organizadores não têm um dever de cuidado para com as equipas. Não deveriam estar a proteger as áreas de estacionamento? Começamos a questionar-nos porque é que os organizadores não estão a dar um passo em frente. Convidam-nos para as suas corridas, usam os nossos ciclistas e equipamento para vender o seu evento e, no entanto, somos deixados à nossa sorte quando se trata de proteção básica".
Estas críticas espelham um consenso: tanto a UCI como a organização espanhola foram rápidas a emitir declarações públicas, mas lentas e pouco eficazes a garantir a segurança e a autoridade necessárias para proteger a corrida.

A polémica da Israel - Premier Tech

No centro da tempestade esteve a Israel - Premier Tech. A equipa, alvo direto dos protestos, acabou por ser questionada quanto à sua permanência em prova. Alguns comentadores sugeriram a retirada como solução para reduzir tensões. A própria equipa respondeu de forma dura: "O organizador da Vuelta merece um cartão amarelo por insinuar que a nossa equipa deve abandonar a competição. Isso seria a última gota. E os Emirados Árabes Unidos ou o Bahrein, onde os direitos humanos são um ponto de fricção? Deixem os ciclistas simplesmente competir".
A declaração evidenciou a contradição de apontar Israel como caso isolado, enquanto outras equipas com ligações a regimes contestados participam sem contestação. Foi também um lembrete de que o desporto nunca está totalmente blindado da geopolítica e que a seletividade mina a credibilidade.
Para muitos corredores, o cancelamento da etapa final foi a prova de que o ciclismo se tornou vulnerável. Michal Kwiatowski deixou a advertência: "Não se pode simplesmente fingir que nada está a acontecer. A partir de agora, é claro para todos que uma corrida de ciclismo pode ser usada como um palco eficaz para protestos e, da próxima vez, só vai piorar, porque alguém permitiu que isso acontecesse e olhou para o outro lado".

Entre protestos e segurança

O que a Vuelta expôs foi um dilema incontornável: de um lado, o direito de manifestação, especialmente quando ligado a causas humanitárias; do outro, a necessidade de garantir a segurança dos ciclistas e a integridade da competição. O problema não foi a existência de protestos, mas a incapacidade das instituições em salvaguardar ambos os valores em simultâneo.
O preço da inação refletiu-se em diferentes níveis: a indignação de Bonneu, a frustração de Vingegaard, o cansaço de Riccitello. Os corredores não só perderam etapas e oportunidades, como foram expostos a riscos em estradas públicas com segurança mínima. No contexto desportivo, isso foi o mais grave. Cortar etapas é uma coisa; colocar em causa a segurança do pelotão é outra muito mais séria.

O futuro das grandes voltas

O que resta agora é perceber como este episódio irá influenciar o futuro do ciclismo. A Vuelta 2025 ficará lembrada como a edição onde política e desporto colidiram de frente. Os organizadores da Volta a França e da Volta a Itália observam atentos, conscientes de que poderão ser os próximos alvos.
Questões urgentes pairam sobre o calendário: deverão as grandes voltas evitar percursos em centros urbanos mais expostos a manifestações? Estará o ciclismo condenado a reforçar policiamento em detrimento da atmosfera aberta que o caracteriza? Ou será necessário abrir canais de diálogo direto com ativistas para reduzir confrontos?
Seja qual for a resposta, uma coisa é certa: declarações institucionais já não bastam. As equipas exigem garantias de segurança, os ciclistas esperam proteção concreta e os adeptos querem seguir corridas seguras e dignas. A Volta a Espanha de 2025 provou que o ciclismo já não pode assumir que pedalará incólume através de linhas de falha políticas.
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