"Um dia liguei para minha mãe a chorar, a dizer que não queria mais pedalar.." João Almeida explica o dia em que a sua carreira mudou e a importância da força mental

Ciclismo
quarta-feira, 10 dezembro 2025 a 10:49
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Impor-se no pelotão atual, marcado pela supremacia de Pogacar, Vingegaard e Evenepoel, é tarefa para poucos. João Almeida é uma dessas exceções, não apenas pela qualidade que demonstra em corrida, mas sobretudo pela forma como pensa e interpreta o ciclismo. Há uma lucidez rara no modo como gere o esforço, combinada com aquela combatividade tão própria, que transparece em cada ataque e em cada defesa de posição. Na entrevista que concedeu ao Ciclismo a Fondo, essa frontalidade ficou ainda mais evidente: fala sem rodeios, sem adornos, dizendo exatamente o que quer dizer.
Longe da pressão da competição, sentado num sofá num dia de descanso, percebe-se melhor a essência do português: o corredor resiliente, fiel aos colegas, e o rapaz que cresceu a pedalar com um póster de Rui Costa colado à parede. A timidez que sentiu quando se cruzou com o ídolo pela primeira vez contrasta com a forma como hoje inspira uma nova geração. O miúdo que sonhava tornar-se ciclista é agora o rosto que muitos jovens penduram nos seus quartos, enquanto alimentam o mesmo sonho que um dia também foi o seu.
A época que viveu reforçou essa ascensão. “Sim, sem dúvida. Consegui muitas e muito boas vitórias. Sinto que dei um salto este ano, sinal de que estou a fazer as coisas muito bem”, reconhece, sublinhando que o seu rendimento não o surpreendeu.
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João Almeida somou 10 vitórias em 2025, todas no worldtour
“A verdade é que sim. Quando treinas e fazes as coisas bem, normalmente sou um corredor que sabe o que tem nas pernas. Tens consciência do que podes fazer; outra questão é consegui-lo porque há aspetos que não controlas. Se caíres, por exemplo, como me aconteceu na Volta a França. Estava muito bem e não fiz nada”.

A queda na Volta a França

A queda que o afastou do Tour ainda o marca. “Um bocadinho, sim. Acho que podia ter feito muito bem. Não só pessoalmente, também como equipa foi doloroso deixá-los tão cedo”.
Recorda que, no momento do impacto, percebeu rapidamente a gravidade: “Sim, senti imediatamente no meu corpo que tinha sido uma queda muito forte, embora não me tivesse magoado muito gravemente. No momento do impacto, é normal sentir dor; depois, ao ver que tinha uma costela partida, foi impossível continuar. No início, sabes que estás em apuros, mas para se levantar, pegar na bicicleta e chegar à linha de chegada, podes fazer um sacrifício. Talvez as minhas mãos doessem mais; pensei que tinha partido um dedo, mas não senti que a costela estivesse fraturada. Comecei a notar quando estava a fazer o raio-x e começou a aparecer uma equimose perto das minhas costelas. Então disse aos médicos: "Vejam, podem dar uma vista de olhos aqui, porque quando toco, dói?" Eles examinaram e, de facto, estava partida".
O português ainda tentou continuar em prova, mas viria a abandonar 2 dias depois: "Eu sabia que estava a tentar o impossível, mas queria tentar. Não queria pensar em ter que desistir, principalmente sem nem tentar. Mas percebi que não era capaz de ir rápido. Desisti quando me dei conta de que havia esgotado todas as possibilidades".
Almeida abandonou após queda na 7.ª etapa da Volta a França
Almeida sofreu uma queda que ditou o abandono na 7ª etapa da Volta a França
Para João, o compromisso com a equipa é inabalável. “Quando tenho uma função, dou tudo por ela. Nesse caso não podia fazer mais, não sou Deus (risos)”. Sofreu ao ver o Tour desde casa, mas manteve a serenidade: “É duro viver isso desde casa sabendo que devias estar lá a fazer a tua parte, embora pudesse ter sido pior”.

A influência de Pogacar

E falar de Tadej Pogacar fá-lo quase sorrir e leva-o a enunciar uma série de elogios, à semelhança do que houvera feito à margem da cerimónia do Velo D'Or, onde subiu ao palco em nome da Emirates: “Eu gosto. É desafiante e, ao mesmo tempo, estou tranquilo porque temos sempre um plano. És parte da história quando estás com ele; para mim é o melhor ciclista de sempre. É alguém especial. Continua a impressionar-me vê-lo correr porque o que ele faz não é normal. Há vezes em que me encontro muito bem e o Tadej está sempre um nível acima. E dizes, não é normal, ele é um extraterrestre”.
Trabalhar para estar ao nível dos melhores é um estímulo diário. “A minha motivação todas as manhãs para treinar é ser a melhor versão de mim mesmo… Espero que seja sempre perto do Tadej (risos). Mas, no fim das contas, trata-se de aproveitar ao máximo o que minhas pernas têm”.
Numa era tão fértil em talento, João Almeida colocou-se por mérito próprio entre os melhores do mundo: "Sim, também há espaço para mim; há muitas corridas. As coisas nem sempre correm bem ou conforme o planeado, nem para mim, nem para os outros. Às vezes, o azar de uma pessoa é a sorte de outra. É preciso aproveitar as oportunidades quando surgem corridas em que alguém cai, outro não se sente bem, outro fica doente... É preciso saber identificar as grandes fugas que definem uma corrida. Sepp Kuss é um bom exemplo disso, quando venceu a Vuelta. Isso acontece com bastante frequência, se pararmos para pensar. O mais forte nem sempre vence”.

A melhor vitória do ano

Define-se como “um ciclista consistente, lutador” e admite que é difícil escolher a melhor vitória: "Não sei, tenho várias boas, mas gosto muito da Volta ao País Basco deste ano. Foi a primeira corrida por etapas que venci nesta temporada. Também destacaria a Volta à Suíça, porque a venci depois de ter recuperado terreno. Não ganhei muitas, então todas são boas e de alta qualidade. É difícil escolher apenas uma; todas são importantes e têm algo de especial".
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Almeida selou a vitória na Volta ao País Basco com um triunfo na etapa final em Eibar
Convidado a entrar em mais detalhes sobre essas corridas, caracterizou o País Basco como uma vitória de força e a Suíça como um triunfo da recuperação, uma "Almeidada" como diriam os fãs. "Sim, porque eu sabia como estava a minha forma, mesmo não achando que era uma prova que me favorecia muito. Abordei a prova de forma diferente e venci com força. Na Suíça, confiei tanto na força quanto na inteligência. Parti três minutos atrás (depois de uma fuga vitoriosa no 1º dia) e, a partir daí, comecei a pensar: Porra! Onde vou recuperar esses três minutos? Porque o percurso não era muito difícil, não havia subidas íngremes. Mas eu consegui".

O início dos inícios e Rui Costa

A sua história começou cedo, mas sem planos grandiosos. “Eu jogava futebol e também nadava, mas cansei-me um pouco desses desportos e queria fazer algo diferente. Sempre andei de bicicleta e comecei a praticar mountain bike. Adorava as descidas. Um dia, experimentei o ciclismo de estrada, eu tinha uns doze ou treze anos e gostei muito. Comecei a participar de corridas e, depois de um ano, comecei a ganhar algumas competições, bem pequenas, é verdade, com pouca gente, mas para mim foi a melhor coisa. Apaixonei-me por esse mundo. Também comecei a acompanhar pela televisão; foi durante os anos das batalhas de Contador com Froome e eu adorei. Percebi também que era ali que estava o meu maior potencial, então aqui estou. Não faz muito tempo, uns dez anos, mas muita coisa aconteceu na minha vida desde então".
Seguia Rui Costa pela televisão e desde sempre foi um ídolo. “Tinha acabado de ganhar o Mundial de Florença e lembro-me de ter um póster grande dele no meu quarto”. O destino quis que mais tarde fosse seu colega, algo que ainda hoje o marca: “É impressionante que um dos teus ídolos seja teu companheiro… O Rui foi um ciclista muito inteligente”.
Almeida puxou a cassete atrás, para recordar o primeiro encontro com Rui Costa: "Lembro-me da primeira vez que vi Rui Costa. Foi no Campeonato Mundial em Richmond. Eu era júnior e ele também estava na seleção nacional. Fiquei apenas a olhar para ele, sem palavras".
Encontra, inclusive, semelhanças nas características de ambos: "Acho que são as mesmas. Tenho pernas fortes, mas venço sempre com a cabeça".
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Rui Costa e João Almeida durante a Vuelta 2023
O caminho até ao WorldTour não foi fácil. "Estive na Axeon, a equipa do Axel Merckx, e antes disso numa equipa continental italiana. Esses foram os anos mais importantes da minha carreira porque me desenvolvi, aprendi muito e dediquei-me ao que queria fazer. Eu não tinha certeza do que queria ser até completar 18 ou 19 anos. Foi quando me disse: ou me esforço ao máximo, ou desisto de vez e nunca mais pedalo. Viver do ciclismo em Portugal é muito difícil. Ou você vai para longe e fica sozinho, o que é muito difícil, ou não conquista nada. Quando subi da categoria júnior, tive que tomar essa decisão".
Essa fase foi determinante para a sua carreira: "Foi o ano mais importante da minha vida, o que mais me marcou. Um dia liguei para minha mãe a chorar porque queria ir para casa, a dizer que não queria mais pedalar... (contou emocionado, com a voz embargada, à beira das lágrimas). Sim, é muito difícil".
A resposta da Dona Ana foi encorajadora: "Experimenta, e se não gostares, volta para casa. Eu ia com bastante frequência porque ainda estava a estudar na universidade. Morava em Pádua, perto de Veneza, com vários colegas de equipa".
Felizmente, experimentou, e o caminho tem sido glorioso: "Sim, eu teria perdido tudo o que veio depois. Eu estava a estudar nutrição, mas, sinceramente, não gostava. Eu ia mudar de carreira, sem dúvida. Não faço ideia de qual. Agora que conquistei tudo isso, valorizo ​​muito mais. Venho de uma cidade pequena; Joaquim Agostinho morava a 40 ou 50 quilómetros daqui. Existe uma certa tradição no ciclismo ao meu redor, mas nada exagerado. Quando recebi a ligação da Quick-Step, foi a realização de um sonho. Tudo o que veio depois foi lucro. Aí começas a ganhar uma corrida, duas... outra equipa muito boa te contrata, encontras o teu lugar e, de repente, estás a lutar por uma Grande Volta".
Hoje, no ciclismo moderno, tudo acontece a ritmo acelerado. “Nas corridas vão todos muito rápido, sofres bastante mais do que antes… Acho que já não se desfruta tanto como antes”.
Mas continua a amar o processo. “Eu desfruto de treinar, do processo desde o primeiro dia”.

O sonho de João Almeida - "Ganhar uma grande volta, seja qual for"

O principal sonho de carreira está cada vez mais perto, depois dos pódios no Giro e Vuelta. "Vencer uma Grande Volta, qualquer Grande Volta, seria o meu sonho. Já venci importantes corridas de uma semana, e uma Grande Volta de três semanas seria ainda mais emocionante. Tenho a sorte de poder liderar algumas corridas em que o Pogacar não está a competir. Talvez se eu pedisse à equipe para ser co-líder com ele, eles me dariam a oportunidade, mas prefiro ir ajudá-lo, e se um dia eu conseguir um bom resultado, farei isso, mas sem comprometer a vitória dele".
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Tudo começou em 2020, quando envergou 15 dias a maglia rosa no Giro
Entre tantos momentos grandes, nenhum se compara ao Angliru. "É uma vitória muito especial na minha carreira. Estou orgulhoso do que fiz naquele dia porque o Jonas esteve na minha roda durante toda a subida. Eu esperava que ele atacasse a qualquer momento, mas ele não atacou. Lembrei-me da última curva de quando a subi há dois anos. Sabia que tinha de ser o primeiro a entrar nela para que ele não me ultrapassasse, e consegui. Foi um dia inesquecível; mal podia acreditar que tinha ganho a etapa. Para mim, o Angliru é a subida mais difícil do mundo",
E apesar de não ter conquistado a vermelha, saiu contente da Vuelta: “Acabar em segundo é um grande resultado… Tentei tudo, portanto posso sentir-me satisfeito”.
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João Almeida bateu Jonas Vingegaard no Angliru, durante a Vuelta 2025
2026 está aí à porta e apesar de ainda não se conhecer o calendário completo, há algumas luzes sobre o que poderá ser a temporada do português, com a Figueira Champions Classic e a Volta ao Algarve como primeiros momentos altos do ano. No que toca às grandes voltas, ainda nada está decidido, mas tudo indica que deverá voltar a fazer duas, faltando ainda definir quais. A participação no Tour parece indubitável, com um peso muito grande de Pogacar nesta decisão, resta saber se regressará ao Giro, que não corre desde 2023, ou rumará novamente à Vuelta, onde quer transformar o 2º posto deste ano num inédito título.
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