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Volta a Portugal sempre foi encarada como património do ciclismo nacional, mas a edição deste ano deixou no ar um rasto de descontentamento. Desde a divulgação tardia da prova até às falhas organizativas visíveis no terreno, muitos dentro da modalidade sentem que a corrida está a perder identidade e qualidade. As críticas multiplicaram-se não só entre adeptos, mas também entre antigos protagonistas e responsáveis ligados ao ciclismo.
A base das queixas é clara:
- divulgação tardia e pouco detalhada da prova;
- pelotão com qualidade e número de equipas abaixo do esperado;
- percurso demasiado exigente em montanha e quilometragem, em datas marcadas por altas temperaturas;
- organização tecnicamente desatualizada;
- sinalização e segurança deficientes;
- decisões disciplinares contestadas;
- falta de rigor na caravana e ausência de medidas de mitigação em etapas com temperaturas extremas.
“É impensável, em 2025, termos comissários ainda a usar formulários de 2005”, lamentou um ex-comissário nas redes sociais.
Críticas ao modelo organizativo
Um dos pontos mais sensíveis prende-se com a sobreposição de funções e a falta de clareza no comando da prova. O presidente da Associação Portuguesa de Ciclistas Profissionais (APCP), por exemplo, foi visto a desempenhar tarefas logísticas ligadas à organização. Situação que levanta dúvidas sobre a imparcialidade necessária para defender os interesses dos corredores.
“Não podemos ter o presidente da APCP ao volante de um carro da organização. Ou está para defender os ciclistas, ou está para apoiar a Podium. As duas coisas são incompatíveis”, comentou, fazendo eco ao sentimento de muitos.
Também o papel do presidente da Federação Portuguesa de Ciclismo (FPC) foi alvo de reparo, uma vez que assumiu publicamente decisões que caberiam ao diretor da prova. “Isto não está nos regulamentos e não acontece noutra corrida internacional”, atirou um diretor desportivo ao jornal Record.
Segurança em causa
A questão da segurança tem sido das mais debatidas. A neutralização de uma etapa devido ao incêndio na Serra do Alvão foi encarada como improviso, quando deveria estar prevista em protocolos de contingência. “É a primeira vez que me acontece uma neutralização destas”, disse um ciclista do pelotão, sem esconder a surpresa.
O contraste com outras corridas nacionais foi inevitável: no Grande Prémio das Beiras, por exemplo, havia já percursos alternativos delineados em caso de necessidade. “Planeamento é a palavra-chave. A Volta tem de aprender com provas mais pequenas”, sublinhou um antigo corredor, hoje comentador na RTP.
Público menos presente
Outro dado que não passou despercebido foi a quebra na afluência do público em comparação com anos anteriores. Nas chegadas em alto, continuaram a aplicar-se restrições herdadas da pandemia, que limitam o contacto entre corredores e adeptos. “É mais cómodo para a organização, mas empobrece a festa”, lamentou nas redes sociais um adepto, que acompanha a Volta desde os anos 90.
E quando o público está em menor número, a questão da visibilidade das marcas patrocinadoras também se coloca. “Se a Volta não chega às pessoas, que retorno têm as empresas que investem?”.
Volta entre tradição e futuro
As críticas não pretendem falar mal da Volta, mas sim resgatá-la. Muitos recordam que a corrida já foi espelho de modernidade e organização, comparável a provas internacionais. Hoje, a distância é maior. “Querem copiar a Volta a França? Muito bem, mas copiem em tudo, não apenas no que vos convém”.
“Acompanho a Volta desde 1988, em várias funções. Fiz parte da organização, fui comissária, trabalhei com equipas estrangeiras. Sei bem o que a Volta já foi. E não me falem em dor de cotovelo. Até recusei trabalhar com a Podium quando fui convidada em 2017”, revela outra fonte, na sua página do facebok.
O que fazer?
O caminho para devolver grandeza à corrida passa por maior proximidade com a base da modalidade. “É preciso sair da zona VIP e falar com ciclistas, equipas, escolas e adeptos. Dá trabalho, mas é a única forma de conhecer a realidade do ciclismo português”, sublinhou a mesma fonte.
No fundo, a Volta continua a ser uma bandeira nacional, mas o tecido que a sustenta está gasto. Para que volte a ser a grande festa do ciclismo português, terá de ouvir quem a critica com amor e não com rancor.
Foto: Podium Events/Matias Novo Fotografias