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Campeonato do Mundo de contrarrelógio de elite masculino em Kigali, no Ruanda, promete ser um dos grandes momentos da época de 2025. Para além de todo o simbolismo da Camisola Arco-Íris, a prova deste domingo coloca frente a frente dois dos maiores nomes do ciclismo moderno:
Remco Evenepoel e
Tadej Pogacar. Um confronto que, mais do que uma disputa pelo ouro, representa também um choque de estilos, filosofias e terrenos.
Ambos são já campeões em série: Pogacar soma quatro títulos na Volta a França, um triunfo na Volta a Itália, uma vitória no mundial de estrada e 9 Monumentos; Evenepoel é dono de uma Vuelta, de duas camisolas arco-íris no contrarrelógio, de medalhas olímpicas e 2 monumentos. Mas quando se olha para o histórico dos dois frente a frente nos CRI's, a balança inclina-se de forma evidente para o belga: em dez confrontos diretos, Evenepoel leva oito vitórias contra duas de Pogacar.
Contudo, esses dois triunfos do esloveno têm um denominador comum: percursos com muita subida, precisamente a característica central do desafio que os espera em Kigali. Assim, apesar da vantagem estatística clara do belga, a geografia ruandesa promete equilibrar as contas e tornar a corrida imprevisível.
Dois estilos opostos
O duelo não se resume a números. É também um choque de estilos. Evenepoel é o protótipo do contrarrelogista moderno: aerodinâmico, constante, capaz de manter potência absurda em terrenos planos ou ondulados. A sua posição sobre a bicicleta é uma lição de eficiência e a sua regularidade em CRI's é quase sem paralelo.
Pogacar, pelo contrário, é o trepador que sabe transformar um contrarrelógio numa corrida em subida. O seu talento para acelerar em rampas curtas e o instinto de gerir ritmos variáveis tornam-no extremamente perigoso quando a estrada se inclina. Em Kigali, com 40,6 quilómetros e 680 metros de desnível, incluindo subidas curtas, descidas rápidas e até uma secção em paralelos, o equilíbrio entre potência e capacidade em subida será decisivo.
Para perceber a importância deste confronto, vale a pena revisitar o historial dos dois ao longo das últimas temporadas.
Frente a frente: 5 anos, 10 confrontos
1. Europeus de 2021 em Trentino
Foi o primeiro grande teste conjunto num contrarrelógio. O percurso era plano, 22,4 quilómetros. Stefan Küng venceu, Filippo Ganna foi segundo, Evenepoel terminou em terceiro. Pogacar ficou em 12º, quase um minuto atrás. A diferença mostrou desde cedo a supremacia do belga em terreno liso.
2. Mundiais de 2021 na Flandres
Em 43,3 quilómetros totalmente planos, Ganna voltou a vencer, Van Aert foi segundo e Evenepoel terceiro. Pogacar ficou em 10º, novamente a mais de um minuto. O padrão estava definido: em terreno plano, o belga é superior.
3. Tirreno-Adriatico 2022
A etapa inaugural foi um CRI plano de 13,9 quilómetros. Ganna venceu, mas Evenepoel foi segundo e Pogacar terceiro, separados apenas por sete segundos. Foi a primeira vez que o esloveno conseguiu aproximar-se, graças às pequenas subidas no percurso.
4. Mundiais de 2022 em Wollongong
O traçado era mais acidentado, mas sem montanha. Tobias Foss surpreendeu e venceu, Evenepoel ficou em terceiro, Pogacar em sexto, a 40 segundos do belga. O equilíbrio começava a crescer, mas a diferença mantinha-se.
5. Mundiais de 2023 em Stirling
Percurso técnico e longo (47,8 km), com subida final de quase 5%. Evenepoel conquistou o seu primeiro título mundial de CRI, batendo Ganna. Pogacar, vindo de uma lesão no pulso e de uma Volta a França desgastante, perdida para Jonas Vingegaard, ficou em 21º, a mais de três minutos. O maior desnível até então não bastou: o belga foi intocável.
6. Volta a França 2024 - 7ª etapa
Primeiro CRI de Evenepoel no Tour: 25 km, 283 metros verticais. O belga venceu, Pogacar foi segundo, a 12 segundos. Uma vitória curta, mas ainda assim vitória.
7. Volta a França 2024 - 21ª etapa (Monaco-Nice)
O primeiro grande triunfo de Pogacar frente a Evenepoel num contrarrelógio. Um percurso de 35 km com La Turbie (8,1 km a 6,5%) e Col d’Èze (1,6 km a 8,1%). Pogacar venceu e selou o Tour. Evenepoel ficou a mais de um minuto. Foi o primeiro sinal claro de que, em subida, o esloveno é superior.
8. Critérium du Dauphiné 2025
Um CRI de 17,4 km com 214 metros de desnível. Evenepoel dominou, vencendo por 20 segundos a Vingegaard. Pogacar terminou quase 50 segundos abaixo, num dos seus piores dias do ano. Em terreno ondulado, Remco continua intransponível.
9. Volta a França 2025 - 5ª etapa
CRI plano a rolante, 33 km com 191 metros de subida. Evenepoel voltou a vencer, 16 segundos à frente de Pogacar. Mais um clássico exemplo da sua supremacia em percursos planos.
10. Volta a França 2025 - 13ª etapa (Peyragudes)
O grande ponto de viragem. Um CRI de montanha puro: 10,9 km com 645 metros de desnível e rampa final a 13%. Pogacar venceu em 23 minutos exatos. Vingegaard foi segundo, Evenepoel apenas 12º, a 2’39. Foi o pior dia da carreira do belga num contrarrelógio.
Lições do passado
O histórico resume-se a um 8-2 para Evenepoel. Mas a estatística esconde a nuance: Pogacar só ganhou em CRI's com grandes subidas, e nesses foi dominante. Evenepoel venceu em todos os percursos planos ou ondulados, quase sempre por margens largas.
Kigali, no entanto, não é nem uma coisa nem outra: é um híbrido. O percurso mistura zonas rolantes com rampas exigentes, uma secção empedrada e um final em subida. A decisão poderá pender para o lado de quem melhor equilibrar potência e capacidade de trepar.
O perfil de Kigali
O percurso de 40,6 quilómetros apresenta 680 metros de desnível acumulado, uma raridade nos Mundiais de contrarrelógio.
- Primeiros 10 km: relativamente planos, até ao primeiro ponto intermédio.
- Côte de Nyanza: 2,4 km a 6%. Primeira subida dura, após 10km de esforço
- Segunda passagem por Nyanza: 6,6 km a 3,5%. Mais longa e menos íngreme, mas ainda exigente.
- Côte de Péage: 1,9 km a 6,6%, a 6 km da meta.
- Côte de Kimihurura: 1,3 km a 6,3% em paralelos, já dentro de Kigali, antes da subida final até ao Centro de Convenções.
Não é uma crono escalada, mas também não é plano. É um percurso para roladores com capacidade de explosão em subida e, nesse campo, tanto Pogacar como Evenepoel têm armas diferentes.
O que esperar de Evenepoel
Para o belga, Kigali é um teste de adaptação. A sua posição aerodinâmica e a potência constante não chegam: terá de saber lidar com repetições em subida e gerir os momentos de aceleração. O seu treino em altitude pode ajudá-lo, mas a memória de Peyragudes pesa. Evenepoel precisa de provar que pode resistir em terrenos que não são completamente planos.
O que esperar de Pogacar
Para o esloveno, Kigali é a oportunidade perfeita. As suas duas vitórias frente a Evenepoel foram em perfis semelhantes, com rampas íngremes a decidir. A secção de paralelos da Côte de Kimihurura pode favorecer a sua explosividade. A grande questão é se conseguirá minimizar as perdas nas zonas mais rolantes, onde Evenepoel tende a ser mais rápido.
Muito mais do que uma medalha
Este duelo vai além do ouro em Kigali. Representa também uma afirmação de território. Para Evenepoel, é a chance de reafirmar a sua supremacia contra o cronómetro depois da implosão nos Pirenéus. Para Pogacar, é a oportunidade de mostrar que também no contrarrelógio pode ser o melhor do mundo quando a estrada sobe.
Conclusão
A rivalidade está em 8-2 para Evenepoel, mas Kigali não é um terreno neutro. Com quase 700 metros de desnível e um final em subida, a prova africana aproxima-se mais dos percursos em que Pogacar brilhou.
No domingo, veremos se Evenepoel consegue impor a sua potência em terreno hostil ou se Pogacar aproveita as rampas para conseguir o seu 1º título mundial no contrarrelógio. Uma coisa é certa: o duelo entre estes dois gigantes promete ser uma das histórias mais marcantes da temporada de 2025.