Os tempos em que se pedalava com cigarros no bolso e vinho no bidon ficaram para trás, mas há um ritual que resiste aos avanços científicos do ciclismo moderno: o brinde com champanhe após uma vitória na
Volta a França. Apesar do escrutínio cada vez maior sobre tudo o que entra no corpo de um ciclista, a taça de espumante continua a marcar presença à mesa, dividindo opiniões entre corredores, nutricionistas e adeptos da velha guarda.
Tradição ou superstição?
Tim Merlier, vencedor de duas etapas nesta edição da Volta a França, não hesita em defender o brinde. “Acabo sempre o meu copo”, confessou ao
Nieuwsblad. “Bebemos copos mesmo pequenos e acho que é uma boa tradição.” Para Merlier, o momento não se resume à bebida, mas sim ao símbolismo da conquista e coesão da equipa durante o jantar de celebração.
Gianni Vermeersch, seu compatriota da Alpecin-Deceuninck, alinha na mesma lógica: “Ganhar uma etapa no Tour é verdadeiramente único, e esse brinde faz parte de perceber que alcançamos algo.”
O espírito de equipa parece ser o verdadeiro ingrediente neste ritual. Karolien Retor, nutricionista da Soudal - Quick-Step, minimiza o impacto da bebida: “Toda a gente brinda por espírito de grupo, mas nem todos os ciclistas bebem tudo.”
Mais psicológico do que fisiológico
Laurenz Rex, da Intermarché-Wanty, vê no brinde uma questão de gosto e equilíbrio mental: “Se o sabor for bom, então bebemo-lo. Como ciclistas, temos sempre de encontrar o equilíbrio certo entre desempenho e bem-estar mental. E acho que uma taça de champanhe ajuda-nos mais mentalmente do que fisicamente.”
Edward Theuns partilha da visão simbólica do momento. “Não há certamente nenhuma celebração exuberante. Isso simplesmente não é aceitável durante o Tour. Para mim, é apenas uma questão de tradição.”
Já Oliver Naesen não esconde um certo à-vontade: “Às vezes bebo dois copos… Mas temos mesmo de pedir um segundo copo. Uma vitória no Tour pode mudar a vida de um ciclista, por isso o champanhe faz parte disso. Se eu alguma vez ganhasse uma etapa, iria sem dúvida atacar o champanhe. Mas talvez seja por isso que ainda não ganhei”, riu-se.
A ciência torce o nariz
Os nutricionistas, porém, mantêm os pés bem assentes nos pedais da ciência. Jemme Terryn, nutricionista da Intermarché-Wanty, lembra que o álcool, mesmo com uma quantidade residual de açúcar, atrapalha os processos fundamentais da recuperação pós-etapa: “O álcool retarda a conversão da glicose em glicogénio, interfere com a recuperação muscular e desidrata, no exato momento em que os ciclistas deveriam estar a reidratar-se e a reabastecer-se.”
Terryn é taxativo: “O fígado tem de decompor o álcool antes de poder voltar a armazenar glicogénio. Esse atraso é o principal problema.”
Também Britt Lambrecht, nutricionista da Lotto, recomenda moderação total. “Se ganhássemos uma etapa, seria obviamente uma grande festa para nós, e todos os que quisessem poderiam beber um copo. Mas eu aconselharia os ciclistas das equipas que ganham quatro, cinco ou seis etapas a não celebrarem sempre que ganharem.”
Equilíbrio e contexto
Apesar dos riscos fisiológicos, o consenso entre os especialistas não é de proibição absoluta. “Um copo de champanhe ou vinho, por si só, não é desastroso”, admite um dos nutricionistas. “São bebidas mais puras do que cerveja ou licores, e se o ciclista seguir corretamente o plano de recuperação, com ingestão adequada de hidratos de carbono, o impacto será mínimo.”
A recomendação é clara: um brinde não deve comprometer a recuperação. As equipas técnicas exigem que os ciclistas priorizem a reidratação, a reposição de glicogénio e o sono de qualidade. “Se o champanhe for o único passo fora do plano, não é um drama. Mas não deve substituir nada, nem bebida isotónica, nem massas ou arroz, nem descanso”, reforça o mesmo especialista.
Entre o passado e o presente
“Já não estamos na era Merckx”, disse um dos técnicos, recordando os tempos em que as bicicletas eram de aço, as etapas tinham mais de 300 quilómetros e os ciclistas improvisavam na estrada. Hoje, os detalhes decidem classificações e a margem para excessos desapareceu. Mesmo assim, a garrafa de champanhe continua a ser tradição dentro da exigência da alta competição.
Conclusão? Tudo com moderação
No fundo, o copo de champanhe pós-etapa tornou-se num ritual mais emocional do que fisiológico. É um brinde à vitória, à superação, ao esforço coletivo. Desde que se mantenha sob controlo e não prejudique a recuperação, a ciência parece disposta a tolerar este gesto simbólico.
No Tour moderno, há espaço para brindar, mas só se for com moderação.