Comparar Joaquim Agostinho e
Tadej Pogacar é um exercício que obriga a atravessar meio século de evolução do ciclismo profissional. De um lado, um ciclista moldado pela dureza absoluta das estradas dos anos 60, 70 e início dos anos 80, num pelotão onde a sobrevivência diária era quase tão importante como o talento. Do outro, um fenómeno criado numa era dominada pela ciência, pela tecnologia, pelo controlo absoluto do treino e pela profissionalização total. São dois mundos totalmente distintos, mas unidos por um elemento comum que não muda com o tempo, o talento puro para ganhar nas grandes montanhas e decidir Grandes Voltas.
Joaquim Agostinho nasceu para o ciclismo competitivo praticamente por acaso, vindo de um passado ligado ao meio militar, e só tardiamente ingressou no pelotão profissional. Ainda assim, rapidamente demonstrou uma capacidade física extraordinária, sustentada por uma resistência fora do comum. A sua carreira ficou fortemente marcada pela presença constante na
Volta a França, onde alinhou por 13 vezes, num período em que apenas terminar a prova já era um feito.
O ponto alto chegou em 1978 e 1979, com dois terceiros lugares finais que ainda hoje figuram entre os melhores resultados de sempre de um ciclista português numa Grande Volta. Num ciclismo dominado por franceses, belgas, italianos e espanhóis, Agostinho conseguiu impor-se como um trepador respeitado por todo o pelotão.
Tadej Pogacar representa o oposto geracional. Campeão da Volta a França antes mesmo de completar 22 anos, tornou-se rapidamente numa superestrela global do ciclismo. Com três vitórias na Volta a França, triunfos em Monumentos como a Volta à Lombardia e a Volta à Flandres, além de conquistas em provas de uma semana como a Volta ao País Basco, Pogacar construiu, em poucos anos, um palmarés que muitos campeões demoraram uma vida inteira a construir.
Com pouco mais de 25 anos, acumula já mais de 100 vitórias como profissional, números absolutamente excecionais no ciclismo moderno.
Os números ajudam a compreender a dimensão do contraste entre ambos, mas exigem sempre contextualização histórica. Na época de Agostinho, as etapas eram frequentemente superiores a 240 e 250 quilómetros, com jornadas de montanha brutais, onde os ciclistas percorriam várias montanhas de grande altitude sem apoio sistemático das equipas. O desgaste era progressivo e cumulativo, e a recuperação era feita quase exclusivamente com base na alimentação tradicional, no descanso e na experiência acumulada. Não existiam planos estruturados de potência, nem acompanhamento científico rigoroso, nem análises biomecânicas, nem simulações de esforço.
No ciclismo de Pogacar, a realidade é radicalmente diferente. As etapas raramente ultrapassam os 200 quilómetros, mas a intensidade é quase constante desde a partida até à meta. Os níveis de potência são monitorizados ao segundo, a nutrição é calculada à grama, a aerodinâmica é estudada ao milímetro e a recuperação é tratada como parte integrante do rendimento. Onde Agostinho corria por sensações, Pogačar corre com base em dados científicos.
Também no domínio dos contrarrelógios as diferenças são significativas. Joaquim Agostinho nunca foi um especialista na disciplina, embora conseguisse, por vezes, limitar perdas de forma notável para um trepador de fundo. Os contrarrelógios da sua época eram, em muitos casos, provas quase improvisadas, com bicicletas convencionais, capacetes rudimentares e percursos longos e irregulares. Pogacar, pelo contrário, construiu parte do seu domínio nas Grandes Voltas através de desempenhos de excelência nesta disciplina, como ficou eternamente marcado na Volta a França de 2020, quando recuperou a liderança da geral no penúltimo dia numa exibição quase perfeita de potência sustentada.
Joaquim Agostinho na Volta a França na etapa do Alpe d'Huez
Em termos de perfil competitivo, Joaquim Agostinho era essencialmente um ciclista de resistência e regularidade. Raramente tinha dias de colapso total e construía as suas classificações gerais através da consistência diária. Subia num ritmo forte e constante, sem grandes variações de cadência e ganhava posições pela acumulação de esforço ao longo das semanas. Tadej Pogacar, por sua vez, representa o ciclista total moderno. Trepa com os melhores trepadores, contrarrelógio ao nível dos especialistas, sprinta em grupos reduzidos, ataca à distância, desce com agressividade e lê a corrida com uma maturidade tática acima da média.
Se Joaquim Agostinho competisse no ciclismo atual, seria inevitavelmente um ciclista diferente do homem que encantou o público nas décadas de 70 e 80. O seu talento natural para a resistência seria potenciado por métodos de treino estruturados por zonas de potência, por estágios em altitude, por controlo rigoroso do peso e por uma abordagem científica à recuperação. As suas limitações históricas no contrarrelógio poderiam ser significativamente reduzidas com material moderno, posicionamento aerodinâmico otimizado e treino específico.
No pelotão atual, Agostinho encaixaria perfeitamente no modelo de líder absoluto de uma equipa para lutar por uma classificação geral. Teria ao seu redor gregários especializados em ritmo de planícies, controlo do pelotão e apoio nas montanhas, algo que raramente existia de forma estruturada na sua época. As equipas modernas trabalham de forma milimétrica para proteger os seus líderes, evitar perdas em dias de vento, gerir os abanicos, controlar fugas e preparar ataques nas subidas decisivas. Nesse contexto, a constância de Agostinho seria uma arma ainda mais valiosa.
Em Grandes Voltas modernas, seria perfeitamente plausível imaginar Joaquim Agostinho a discutir pódios de forma regular e, em determinadas corridas, a lutar mesmo pela vitória final, sobretudo em percursos com grande volume de alta montanha e menos quilómetros de contrarrelógio. A sua capacidade de recuperação ao longo de três semanas, comprovada por múltiplas presenças nos primeiros lugares da Volta a França e da Volta a Espanha, seria ainda hoje um dos seus maiores trunfos.
O confronto directo entre Agostinho e Pogacar, num mesmo plano temporal, seria um duelo de filosofias de corrida. Agostinho representaria a escola da construção paciente da vitória, do desgaste progressivo, da subida feita a ritmo constante, do ganho metro a metro sobre os adversários. Pogacar simboliza a agressividade permanente, o ataque explosivo, a capacidade de partir as corridas com mudanças súbitas de ritmo e com ataques inesperados a dezenas de quilómetros da meta.
Nas grandes jornadas alpinas, seria fascinante observar o choque entre estas duas abordagens. Agostinho procuraria impor um ritmo seletivo, desgastar o grupo, deixar cair adversários por exaustão. Pogacar tentaria, muito provavelmente, antecipar os movimentos, atacar em pontos improváveis da subida, explorar a explosividade e a versatilidade. Não seria apenas uma batalha de watts, seria um choque entre duas culturas do ciclismo.
Do ponto de vista do impacto histórico, ambos ocupam lugares de enorme relevância nos respetivos países. Joaquim Agostinho foi, durante décadas, o rosto maior do ciclismo português no panorama internacional. Abriu portas, criou referências e demonstrou que um ciclista vindo de Portugal podia subir aos pódios das maiores corridas do mundo. O seu nome continua a ser sinónimo de sacrifício, coragem e resistência, valores profundamente ligados à identidade do ciclismo clássico.
Tadej Pogacar é um dos nomes maiores da era moderna do ciclismo
Tadej Pogacar, por sua vez, já ultrapassou a condição de talento emergente para se afirmar como uma das figuras mais influentes da história moderna do ciclismo. O seu domínio transversal em diferentes terrenos, a sua irreverência competitiva e a sua capacidade de vencer tanto em Grandes Voltas como em Monumentos colocam-no num patamar reservado apenas aos verdadeiros fenómenos geracionais. A Eslovénia, que há duas décadas era praticamente irrelevante no ciclismo mundial, tornou-se uma potência graças, em grande parte, ao efeito Pogacar.
A comparação entre Joaquim Agostinho e Tadej Pogačar não deve ser feita apenas em termos de vitórias ou estatísticas absolutas. Deve ser entendida como o encontro simbólico entre duas eras do ciclismo que se regem por códigos profundamente diferentes. Agostinho venceu num tempo de sacrifício extremo, de recursos mínimos e de dureza quase desumana. Pogacar vence num tempo de excelência científica, de estruturas milionárias e de controlo absoluto do detalhe.
No fim, a grande conclusão é simples e poderosa. O ciclismo mudou radicalmente. As estradas são melhores. As bicicletas são mais leves. Os planos de treino são cirúrgicos. As equipas são máquinas de precisão. Mas a essência que transforma um homem num grande ciclista continua intacta. Joaquim Agostinho e Tadej Pogacar pertencem a épocas diferentes, mas partilham a mesma matéria prima rara que separa os bons dos verdadeiramente especiais. Um venceu contra as limitações do seu tempo. O outro vence potenciando todas as vantagens do seu. Ambos, à sua maneira, venceram o próprio tempo.
Bloco comparativo – Joaquim Agostinho vs Tadej Pogacar
| Joaquim Agostinho | Tadej Pogacar |
| País | Portugal | Eslovénia |
| Período de carreira ao mais alto nível | Anos 70 e início dos 80 | 2019–presente |
| Participações na Volta a França | 13 | 6 |
| Melhor resultado na Volta a França | 3.º lugar (1978 e 1979) | 1.º lugar (3 vezes) |
| Pódios em Grandes Voltas | 3 | 8 |
| Vitórias totais como profissional | 60 | 108 |
| Vitórias em Grandes Voltas | Várias etapas | Várias etapas + vitórias finais |
| Vitórias em Monumentos | 10 | Volta à Lombardia, Volta à Flandres |
| Especialidade principal | Trepador puro, resistente de fundo | Ciclista total, trepa, contrarrelógio e sprinta |
| Estilo de subida | Ritmo constante, desgaste progressivo | Ataques explosivos e variação de ritmo |
| Contexto técnico | Treino empírico, material pesado, pouca ciência | Treino por potência, material ultraleve, ciência total |
| Apoio de equipa | Estrutura limitada | Blocos altamente especializados |
| Recuperação | Baseada no repouso e alimentação tradicional | Protocolos científicos de recuperação |
| Impacto histórico | Maior nome do ciclismo português | Fenómeno global do ciclismo moderno |
| Perfil numa equipa actual | Líder sólido para classificações gerais | Superlíder absoluto para qualquer terreno |