Durante grande parte da sua primeira época na UAE Team Emirates, o mecânico Bostjan Kavcnik não podia sequer aproximar-se da bicicleta de
Tadej Pogacar.
“Isso significou que tive de me provar, literalmente,”
explica Kavcnik em conversa com a Siol. “No início, não me era permitido sequer tocar na bicicleta do Pogacar”.
Hoje, a relação não podia ser mais diferente. Pogacar insiste agora que apenas Kavcnik trabalhe na sua bicicleta de corrida, um nível de confiança raro mesmo no WorldTour e que acarreta enorme responsabilidade.
“Quando o Tadej teve certos problemas, expressou pessoalmente o desejo de, a partir desse dia, trabalhar exclusivamente comigo”, disse Kavcnik. “Que só eu tocasse na bicicleta dele.”
O que se seguiu não foi apenas reconhecimento profissional, mas uma reestruturação silenciosa da forma como Pogacar opera nos bastidores. É uma história não sobre ganhos marginais, mas sobre certezas num desporto onde a incerteza está em todo o lado.
A bicicleta como a única arma do corredor
Para Kavcnik, a base dessa relação é simples. “A bicicleta é o único ponto de contacto do corredor, a sua única arma”, indicou. “Se não funciona de forma irrepreensível, tudo fica em risco, dos resultados à saúde”.
Por isso, a confiança, uma vez quebrada, não se reconstrói. “Quando a confiança entre um mecânico e um corredor se quebra, a cooperação termina”, explanou Kavcnik. “Alguns mecânicos talvez nem mereçam trabalhar ao nível WorldTour”.
Essa filosofia rege agora toda a cadeia logística de Pogacar. Enquanto o resto da UAE viaja com as suas bicicletas para os estágios, Pogacar não o faz. “Ele é o único que chega ao estágio e parte sem bicicleta”, disse Kavcnik. “Eu entrego-lhe pessoalmente a nova bicicleta e, ao mesmo tempo, levo-lhe a antiga”.
Uma bicicleta fica permanentemente na Eslovénia, outra acompanha a rotina de treinos de Pogacar no Mónaco. É um privilégio que se desenvolveu gradualmente, não por imposição.
“Chegámos a este nível gradualmente”, contou Kavcnik. “Nos primeiros anos não era assim e ele viajava sempre com as bicicletas”.
Dentro da fábrica de Benidorm
A confiança que Pogacar deposita num mecânico existe dentro de uma operação muito maior.
No estágio da UAE Team Emirates - XRG, a preparação tem escala industrial. “Os corredores chegam com as bicicletas antigas com que treinaram todo o ano”. explicou Kavcnik. “Aqui recebem novas”.
Seguem-se semanas de comparação, afinação e registo meticulosos. “Os mecânicos e a equipa responsável pelo bike fitting verificam cada detalhe”, continuou. “Ajustamos se necessário, adaptamos selins, posições nas bicicletas de contrarrelógio. Este processo decorre praticamente durante todo o estágio”.
Nos dias finais, cada alteração é registada antes de os corredores partirem com as novas máquinas. “Estão aqui cerca de 30 corredores profissionais, cerca de 15 da equipa de desenvolvimento e alguns juniores”, referiu Kavcnik. “Todas as bicicletas são verificadas todos os dias e muitas vezes limpas a fundo”.
Para os mecânicos, a carga de trabalho é implacável. “Só para a equipa masculina há aqui dez mecânicos”, denotou. “Cada mecânico é responsável por um número específico de corredores”.
O estágio de Benidorm cumpre ainda outra função. Expõe novos corredores e staff às realidades do ciclismo de alto nível. “Em duas semanas vê-se rapidamente quem sabe o quê, como as pessoas trabalham e qual é a sua atitude perante o trabalho e a equipa”.
Uma época construída à mão
Fora das corridas, a pré-época de Kavcnik é passada a montar bicicletas, por vezes em números avassaladores. “A temporada de 2025 foi extremamente exigente para nós”, revelou. “Tivemos de construir quase 300 bicicletas”.
Essa carga aumentou com a rápida evolução do equipamento. “Tivemos três modelos de bicicleta de estrada”. “Começámos com a V4Rs, continuámos com a V5Rs e depois chegou a Y1Rs”, enumerou.
Para Pogacar, isso significou mais trocas de bicicleta do que em qualquer momento da carreira. “Em 2025, o Pogacar utilizou mais bicicletas diferentes do que nunca”, contou Kavcnik. “Três modelos base, mais a bicicleta amarela, a preta e a especial de campeão do mundo”.
Uma das bicicletas utilizadas por Pogacar em 2025 (a amarela), durante a última etapa da Volta a França
Cada mudança acrescentou pressão. “Cada bicicleta tem de ser preparada na perfeição, ao mais ínfimo detalhe. O Tadej espera isso e, para ser honesto, não merece menos”.
Pressão dentro do carro da equipa
Nos dias de corrida, Kavcnik passa da oficina para a caravana, onde a preparação encontra o caos. “Tens de estar sempre alerta”, avisou. “Às vezes um mecânico no carro até adormece porque o ritmo e o calendário são brutais”.
Os dias são longos e implacáveis. “Às vezes começo às seis da manhã e vou para a cama à meia-noite. O carro é por vezes o único sítio onde se pode fechar os olhos por instantes”.
Mesmo assim, a tensão não desaparece. “Estás constantemente a questionar-te se vai correr tudo bem. Essa tensão está sempre presente, mas com a experiência torna-se um pouco mais fácil”.
Quando surgem incidentes, entra o protocolo. “Esperas até o carro parar e só então reages”, disse Kavcnik. “Quanto melhor coordenados estiverem o motorista, o diretor desportivo e o mecânico, mais rápida e precisa é a intervenção”.
Uma estatística discreta de uma época dominante
No meio das vitórias sonantes de Pogacar em 2025, um detalhe foi especialmente valorizado dentro da equipa. “Nesta temporada, por exemplo, ele não teve um único furo que exigisse troca de roda”, destacou Kavcnik.
É uma estatística que refere com cautela. “Não gosto de dizer isso em voz alta”. acrescentou. “Mas é algo de que podemos orgulhar-nos”.
Para Kavcnik, reflete muito mais do que sorte. “Fala de pneus excelentes, equipamento topo de gama e também da habilidade e do tato do corredor com a bicicleta".
Os corredores, nota, diferem muito na forma como tratam as suas máquinas. “Alguns regressam de um reconhecimento com a bicicleta como se tivessem procurado deliberadamente todas as poças”. Em contraponto “Outros regressam com a bicicleta imaculada”.
Pogacar pertence claramente ao segundo grupo.
Reconhecimento e responsabilidade
Ser escolhido como mecânico exclusivo de Pogacar trouxe prestígio, mas também peso. “Por um lado foi um enorme reconhecimento. Por outro, também uma responsabilidade gigantesca e algumas noites sem dormir”.
Hoje, essa responsabilidade está integrada no planeamento da UAE. “O coordenador sabe automaticamente que, nas corridas em que o Pogacar participa, eu também tenho de ser enviado”, disse. “Os nossos calendários estão praticamente alinhados.”
Kavcnik viaja muitas vezes dias antes de Pogacar, preparando logística, equipamento e detalhes muito antes da chegada do corredor. “Cada detalhe tem de estar no sítio”.
No ciclismo moderno, a vitória é muitas vezes enquadrada por dados, planos de treino e tática. A história de Kavcnik oferece uma verdade mais silenciosa. No coração da dominância de Pogacar está algo mais simples e muito mais difícil de fabricar. Confiança.