Durante mais de uma década, Philippa York foi uma das figuras mais enigmáticas e respeitadas do ciclismo britânico, reconhecida pelas suas façanhas na montanha e pelo carácter reservado. Agora, aos 66 anos, a antiga ciclista reflecte sobre o passado e o percurso pessoal que a moldou, num novo livro escrito em colaboração com o jornalista David Walsh, The Escape.
Walsh, que se destacou por ter ajudado a expor o sistema de dopagem de Lance Armstrong, empresta o seu rigor e conhecimento ao projecto. Mas o verdadeiro impacto da obra reside na voz de York, marcada por uma honestidade rara.
“Não havia comunidade LGBTQ nos Gorbals onde cresci”, contou ao The Guardian. “Se eu via o David Bowie no Top of the Pops, pensava: ‘Ah, isso é interessante’, mas ele não era um modelo. Isso não me fazia pensar que podia ser o que quisesse.”
Entre 1980 e 1995, York competiu como Robert Millar, afirmando-se como um dos mais talentosos trepadores do pelotão internacional. A sua carreira ficou marcada pelo 2.º lugar na Volta a Espanha de 1984, um feito inédito para o ciclismo britânico à época, bem como pela vitória na classificação da montanha na Volta a França desse mesmo ano. Somou também triunfos de etapa tanto na Grand Boucle como na Volta a Itália.
Phillipa York foi anteriormente conhecida por Robert Millar
A transição de género foi anunciada em 2000, após anos de angústia interior. “Sabia que era diferente desde os 5 anos”, partilhou. “Percebes que os outros te vão bater. Depois, há o medo de seres exposta e a vergonha de não pertenceres ao grupo onde te esperam ver integrada. Agora há marchas do Orgulho, mas eu não sentia orgulho nenhum.”
A discussão em torno das atletas transgénero tem vindo a intensificar-se, oscilando entre os princípios de inclusão e as preocupações com a equidade. As alterações fisiológicas provocadas pela terapia hormonal ainda estão a ser compreendidas, e as políticas variam entre federações. Para York, o debate não é teórico, é visceral. “Reduzir as mulheres trans apenas à questão da vantagem física ignora tudo o que passamos a nível emocional, social e fisiológico”, argumenta. “Mas as preocupações das atletas femininas também devem ser ouvidas, sem se tornarem num pretexto para a exclusão.”
O livro revela o peso da solidão que viveu durante a carreira. “Não sei se os meus pais perceberam o que se passava comigo”, confessa. “Eram os anos 70. Não posso perguntar ao meu pai porque já não está cá. Mesmo hoje, ninguém quer que o filho seja diferente, porque sabe que isso traz estigma.”
Durante muitos anos, a bicicleta foi o seu refúgio. “Não tens tempo para pensar noutras coisas”, explicou. “Se estás na corrida, não estás a processar o mundo à volta.” Mas o ambiente do ciclismo não a protegeu por completo. “Havia insultos homofóbicos, intimidação verbal. Mas isso já nem me afetava. Aprendi a devolver. Sabia insultar em quase todas as línguas.”
Esse escudo emocional permitiu-lhe resistir, mas a um preço alto. “Não precisava de emoções. Elas só iam atrapalhar. Aprendi a desligar. O muro que construí à minha volta servia para funcionar.” Quando terminou a carreira, esse muro ruiu. Caiu numa depressão profunda. “Ficou pior depois de parar. Pensei: ‘Quem sou eu?’ A ciclista tinha desaparecido. Tive de lidar com isso. E com a decisão de transitar ou não.”
Procurar ajuda foi um processo demorado. “Estava num lugar muito negro, mesmo muito deprimida. Não sabia se ia fazer a transição completa. Mas precisava de descobrir até onde conseguiria ir. Nunca pensei em suicídio, mas compreendo quem pense. Pensas: ‘Se calhar, basta um pouco de terapia, de aconselhamento, ou reposição hormonal’. Mas não sabes onde vais parar. Aguentei-me até ao novo milénio, mas já não era sustentável. Não estava a funcionar e não podia continuar assim.”
A construção da nova identidade foi feita passo a passo. “Passou a ser: ‘Que tipo de mulher vou ser?’ Tive de aprender tudo, até os pequenos sinais sociais. Tive de os aprender rapidamente para não parecer vulnerável.”
Hoje, Philippa York é uma das comentadoras mais respeitadas do ciclismo e uma voz ponderada no debate sobre a inclusão trans no desporto. “Há mais compreensão agora”, afirma, “mas não acho que haja mais aceitação.”
Não evita as zonas cinzentas da discussão. “Interrogo-me se algumas terão vantagem, mas olho para as prestações. ‘São melhores do que eu por terem nascido homens, ou por serem mais talentosas? Ou têm mais tempo para treinar, ou melhores meios?’”
Aponta também a ignorância que existe em relação ao impacto biológico da transição. “As pessoas não percebem as alterações fisiológicas. A testosterona basicamente desaparece. A testosterona não te torna mais forte, faz parte do sistema que repara os danos causados pelo exercício.”
Apesar das declarações públicas de inclusão por parte da British Cycling, York não esconde o seu desconforto com a política atual da federação. “Eles tiveram empregados que assinaram uma carta enviada à UCI a pedir que mulheres trans fossem excluídas. Em qualquer outra organização, essas pessoas seriam despedidas.”
A federação reagiu com um comunicado: “Acreditamos firmemente que o ciclismo é para todos e estamos comprometidos em acolher o maior número possível de pessoas no nosso desporto. As nossas políticas competitivas, como na maioria dos desportos, procuram garantir justiça nas competições… Qualquer pessoa pode competir na nossa categoria ‘Open’, incluindo mulheres trans, homens trans e pessoas não-binárias. A British Cycling leva muito a sério quaisquer alegações de comportamentos homofóbicos ou transfóbicos e tem uma política de tolerância zero. Estamos a trabalhar ativamente para tornar o ciclismo o mais acessível e acolhedor possível.”
O equilíbrio continua difícil de atingir, tanto em termos de regulamento como de percepções públicas. A visibilidade de York trouxe-lhe não só críticas, mas também reconhecimento como figura de referência para outras pessoas em processo de transição.
Ela não está sozinha. Nomes como Laurel Hubbard, CeCe Telfer ou Kristen Worley também enfrentaram o escrutínio mediático enquanto pioneiras no desporto de alto rendimento. Mas o percurso de York distingue-se pelo silêncio que a rodeou durante anos e pela forma como, com o tempo, ela conquistou o seu espaço.
O que antes era vivido em segredo, é agora partilhado com convicção. E independentemente do nome que aparece nas folhas de resultados, Philippa York continuará a ser uma das vozes mais influentes e resilientes da história do ciclismo.