Durante uma semana inesquecível em setembro, o Ruanda foi o epicentro do ciclismo mundial. A estreia dos Campeonatos do Mundo em solo africano encheu Kigali e as suas “mil colinas” de cor, som e emoção. As imagens de Tadej Pogacar, Remco Evenepoel e de muitas outras estrelas do pelotão global percorrendo as estradas africanas tornaram-se símbolo de um novo horizonte para o ciclismo.
Mas quatro meses depois, o entusiasmo parece dissipar-se.
A Volta ao Ruanda 2026, agendado para 22 de fevereiro a 1 de março, está em risco de passar despercebido. A prova, que deveria capitalizar o sucesso do Mundial, enfrenta um problema estrutural de calendário e, com ele, um futuro incerto no panorama internacional.
A data que mata o entusiasmo
A corrida coincide com um dos períodos mais saturados do calendário
UCI:
- UAE Tour, o ponto de partida da época para muitas estrelas do WorldTour.
- Volta ao Algarve e Volta a Andaluzía, tradicionais provas de preparação europeias.
- As Clássicas de Ardeche e o fim de semana de abertura da Flandres, que marcam o início da primavera belga.
Num calendário já sobrecarregado, a Volta ao Ruanda não consegue competir pela atenção nem pelas equipas. As formações WorldTour simplesmente não têm espaço para encaixar uma viagem intercontinental para uma corrida de categoria 2.1, sobretudo com logísticas exigentes e poucas perspetivas de retorno desportivo.
“É impossível gerir um calendário triplo e incluir uma deslocação tão longa para uma prova desta categoria”, relatou uma fonte próxima do pelotão ao
SpazioCiclismo.
A UCI tenta intervir, mas o entusiasmo é limitado
A UCI já reconheceu o problema e está a trabalhar com os organizadores locais para encontrar soluções. Uma das propostas em cima da mesa é reduzir a prova de oito para cinco etapas, simplificando a logística e tornando o evento mais apelativo para as equipas europeias.
No entanto, a ideia não tem gerado entusiasmo.
Várias equipas, que já haviam expressado reservas em 2025 devido a preocupações com a segurança e a estabilidade geopolítica da região, mantêm-se reticentes em incluir o Ruanda no seu planeamento.
Mesmo com o êxito organizativo e mediático do Mundial, a transição para um calendário pós-evento sustentável está longe de ser garantida.
O legado do Mundial: um sucesso sem herdeiros?
Os Campeonatos do Mundo de 2025 foram um marco histórico:
mais de um milhão de espectadores, cobertura televisiva global e elogios generalizados à organização ruandesa. Para o ciclismo africano, foi um sinal de que o continente podia acolher eventos de topo.
Mas, como tantas vezes sucede após grandes competições, a herança corre o risco de se perder. Sem um evento de referência capaz de manter o entusiasmo vivo, o continente pode ver a chama apagada tão depressa quanto se acendeu.
ASO, Golazo e o dilema da continuidade
O SpazioCiclismo revela que a ASO (organizadora da Volta a França e parceira logística dos Mundiais de Kigali) foi consultada sobre um eventual envolvimento na Volta ao Ruanda, mas não demonstrou interesse. A empresa francesa continua focada nos seus ativos tradicionais, nomeadamente no Médio Oriente e na Europa, e não pretende expandir a curto prazo para África.
Outra possibilidade seria a Golazo, empresa belga que já tem presença em Nairobi e vai abrir este ano um escritório em Kigali. Com a experiência adquirida nos Campeonatos do Mundo, a Golazo surge como a única candidata viável para dar a Volta ao Ruanda um novo fôlego organizativo.
Mesmo assim, ainda não há qualquer compromisso formal.
“Seria uma oportunidade extraordinária para consolidar o legado do Mundial”, comenta uma fonte da federação local. “Mas sem o apoio de uma grande estrutura internacional, será difícil dar o salto.”
Entre ambição e realidade
Fundado em 1988 e elevado a prova UCI 2.1 em 2009, a Volta ao Ruanda tem sido uma história de sucesso gradual, atraindo formações como a TotalEnergies, Israel - Premier Tech e Lotto. Também a UAE Team Emirates, XDS Astana e Soudal Quick-Step já marcaram presença, embora com as suas equipas de desenvolvimento.
O potencial existe, paisagens únicas, público entusiasta e estradas desafiantes —, mas a ausência de uma estratégia sólida ameaça travar o crescimento.
Se nada mudar, o Ruanda pode ver a sua corrida mais emblemática tornar-se uma oportunidade perdida num momento em que o ciclismo africano precisava de continuidade.
O desafio: transformar o sucesso em estrutura
O Tour du Rwanda encontra-se, assim, num ponto de viragem.
Se quiser manter o legado do Mundial e consolidar-se como a grande prova africana do calendário UCI, terá de resolver dois problemas fundamentais:
- Reposicionar-se no calendário, longe das grandes provas europeias e do Golfo.
- Garantir uma organização internacional sólida, capaz de atrair equipas WorldTour de forma consistente.
Enquanto isso, o país que conquistou o mundo com o seu entusiasmo pelo ciclismo espera por um novo impulso, para que a magia de setembro não se torne apenas uma memória.