Faltam apenas 2 dias para começar a 80ª edição da
Volta a Espanha, com partida prevista para Turim, este sábado e, certamente, poucos ciclistas conhecem tão bem a natureza imprevisível desta grande volta como
Vincenzo Nibali. O “Tubarão de Messina” - vencedor da Vuelta em 2010 e um dos sete ciclistas da história a conquistar as três Grandes Voltas - sabe que a corrida espanhola é tantas vezes uma batalha mental tanto quanto física.
E para a equipa da Emirates, a componente psicológica pode ser o maior desafio. "Ambos vão querer liderar. Nenhum deles vai querer ser o segundo violino", afirmou Nibali em declarações à Bici.Pro, sobre a decisão de
alinhar com Juan Ayuso e João Almeida como líderes conjuntos. "É claro que será a estrada a decidir, mas quando isso acontecer, aquele que estiver um pouco fora do ritmo tem de ser suficientemente maduro para apoiar o outro. Isso nem sempre é fácil, como vimos no Giro deste ano".
É o enigma clássico da dupla liderança: em teoria oferece flexibilidade e profundidade; na prática pode gerar hesitações táticas, lealdades divididas e oportunidades desperdiçadas. E, como Nibali lembra, a Vuelta, com o seu carácter menos previsível e um controlo tático mais solto, é um terreno fértil para este tipo de complicações.
"Na minha opinião, o que vimos na etapa de Strade Bianche entre Del Toro e Ayuso no Giro foi muito grave", refletiu. "Mas, ao mesmo tempo, nós que estamos de fora nunca sabemos realmente o que se passa dentro do autocarro da equipa, se é uma fricção genuína ou apenas uma competição natural".
Uma jovem estrela e um calculista do topo
Juan Ayuso, ainda com 22 anos, é visto como uma das grandes promessas de Espanha. O seu 3º lugar na geral da Vuelta 2022, quando era ainda adolescente, deixou isso claro. Já
João Almeida apresenta-se como o motor diesel, estrategicamente astuto, menos exuberante mas implacável, com um pódio no Giro e lugares de top-10 em todas as grandes voltas que concluiu, para além de 4 vitórias em corridas por etapas do worldtour.
"São ambos fortes, sem dúvida", sublinhou Nibali. "Mas este tipo de corrida, com todo o seu caos e imprevisibilidade, exige paciência. Ayuso ainda é jovem. Ele tem de manter a calma. Uma grande volta não se ganha num dia, é um teste de resiliência de três semanas".
Com Jonas Vingegaard a regressar de uma boa campanha na Volta a França e rodeado por uma Team Visma inteiramente dedicada à candidatura à 1ª Vuelta do seu palmarés, a margem de erro da Emirates é mínima. Para Nibali, a forma como a equipa conseguir gerir este equilíbrio interno pode ser determinante para o seu sucesso.
Uma corrida que resiste ao controlo
A Vuelta, ao contrário da estrutura mais rígida de França e Itália, é um teatro do caos. É onde se escrevem arcos de redenção, contratos são conquistados ou salvos e surpresas se transformam em lendas. Também é a grande volta menos propícia ao planeamento excessivo. "É muito mais difícil de interpretar do que o Giro ou o Tour", avisou Nibali. "Há menos controlo no pelotão. A corrida é nervosa. Há emboscadas, grandes fugas e reviravoltas inesperadas".
Parte da explicação está na própria natureza do pelotão: alguns chegam frescos, outros demasiado cansados, outros ainda mal preparados. Uns perseguem a classificação geral, outros procuram etapas para garantir contratos. "O cansaço de uma época inteira pesa sobre todos", apontou Nibali. "E isso sente-se".
O terreno que quebra o ritmo
Outro fator de risco está no perfil do percurso. As subidas espanholas são traiçoeiras, não tão longas como os monstros alpinos da Volta a Itália ou da Volta a França, mas mais duras em termos de inclinação. Nenhuma ilustra isso melhor do que a Bola del Mundo, chegada da 20ª etapa e potencial decisão do título.
"Lembro-me bem de 2010", disse Nibali, recordando a edição em que venceu a Vuelta. "A primeira parte é fácil, com uma estrada larga. Mas depois vira à direita e os últimos três ou quatro quilómetros são em rampas estreitas de betão, com inclinações até 20%. Talvez não seja tão brutal como o Angliru, mas está lá perto".
A Bola del Mundo não é a única armadilha. A corrida é marcada por subidas curtas e explosivas, muitas vezes colocadas no final de etapas, favorecendo ciclistas de aceleração rápida. "É adequado para corredores como Ciccone, por exemplo", destacou Nibali. "Ele mostrou estar em grande forma com a vitória em San Sebastián. Este tipo de corrida é perfeito para ele".
Giulio Ciccone é visto como a melhor hipótese de Itália vencer a Vuelta e chega em grande forma, depois da vitória na Clásica San Sebastian e numa etapa na Volta a Burgos
As esperanças de Itália: Ciccone, Caruso e Ganna
As ambições italianas concentram-se sobretudo em três nomes: Giulio Ciccone, Damiano Caruso e Filippo Ganna. Caruso, sempre fiável, treinou em altitude para chegar no melhor nível. "Ele está em boa forma", disse Nibali. "Se o seu objetivo é a geral ou apenas etapas, veremos, mas pode certamente cumprir".
Já Ganna regressa após a amarga desistência na primeira etapa da Volta a França. "Ele vai estar motivado", comentou. "Tem algo a provar".
E surge ainda Antonio Tiberi, que deixou boas indicações no Giro 2024 mas desde então oscilou. "Só espero que não tenha entrado num ciclo negativo", admitiu Nibali. "Ele tem carácter. Treinou com Caruso, o que é positivo. Mas agora tem de mostrar a sua verdadeira posição. Penso que ainda precisa de alguns passos para amadurecer totalmente"-
Vingegaard: o homem a bater
Naturalmente, todas as atenções acabam por convergir em Jonas Vingegaard. Após mais um Tour sólido, mas sem vitória, o dinamarquês aponta agora a Vuelta. "Ele é o favorito, sem dúvida", assegurou Nibali. "A equipa está construída à volta dele. Eles têm força para tentar controlar a corrida, mas esta é a Vuelta. Tudo pode acontecer"
E é precisamente essa aura de imprevisibilidade que torna a prova tão fascinante. Enquanto a Volta a França é frequentemente estereotipada e a Volta a Itália carregada de sentimentalismo, a Volta a Espanha mantém-se gloriosamente indomável, palco onde campeões veteranos encontram novos capítulos e jovens estrelas emergem. "Olhem para o Pogacar", recordou Nibali. "Ele mostrou-se pela primeira vez ao mundo na Vuelta".
Se 2025 ficará marcado pela consagração de Vingegaard, por tensões internas na Emirates ou pelo nascimento de uma nova estrela, será o caminho até Madrid a ditar.