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Campeonato do Mundo de Estrada da
UCI já passou pela Europa, pelas Américas, pelo Médio Oriente e pela Ásia, mas nunca antes a Camisola Arco-Íris tinha sido disputada em solo africano. Essa estreia acontece este fim de semana, quando Kigali acolher a semana mais prestigiada do calendário internacional. Mais do que um evento desportivo, esta edição tem uma importância que ultrapassa pódios e medalhas: é um marco na globalização do ciclismo e um teste à forma como o desporto gere política, cultura e infraestruturas num país anfitrião complexo.
Um marco histórico
Durante décadas, o ciclismo de estrada de elite esteve centrado na Europa, com incursões ocasionais na América do Norte e na Ásia. A escolha do Ruanda para 2025 reflete a ambição declarada da UCI de expandir o desporto a novas geografias. O presidente David Lappartient descreveu a decisão como uma forma de "levar o ciclismo a novas alturas", frase que também inspira o slogan oficial do evento: Riding New Heights. O lema traduz tanto a geografia literal do Ruanda, conhecido como "terra das mil colinas", como o objetivo simbólico de elevar o ciclismo a novos territórios.
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Volta ao Rwanda, já consolidado no calendário do UCI Africa Tour, ajudou a legitimar a candidatura. É uma das corridas por etapas mais populares do continente, atraindo multidões entusiastas e mostrando o fervor local pelo ciclismo. Kigali, situada a mais de 1500 metros de altitude, garante ainda condições únicas: a rarefação do ar torna a corrida mais exigente e acrescenta um desafio que muitos favoritos não enfrentam habitualmente. Para a UCI, trata-se de um momento estratégico para fortalecer a ligação com públicos e talentos africanos, apostando no crescimento global da modalidade.
Percursos seletivos em Kigali
O terreno ruandês assegura que os Mundiais de 2025 sejam dos mais duros de sempre. A corrida de estrada masculina conta com mais de 5000 metros de desnível, enquanto os contrarrelógios apresentam uma sucessão de rampas técnicas em altitude. Não bastará medir forças com os adversários: os ciclistas terão de lidar com ar rarefeito, subidas repetidas e até paralelos.
O contrarrelógio de elite masculino terá 40,6 quilómetros, com 680 metros acumulados. Logo ao quilómetro 10 surge a Côte de Nyanza, 2,5 quilómetros a quase 6%. Depois, a mesma colina é enfrentada pelo lado mais longo mas menos íngreme, 6,6 quilómetros a 3,5%. No final, o traçado endurece com a Côte de Péage (1,9 km a 6,6%) e a decisiva Côte de Kimihurura: 1,3 quilómetros a 6,3% sobre paralelos, antes da subida final até ao Centro de Convenções de Kigali. O ritmo, a gestão de esforço e até escolhas técnicas como pneus e pressões podem ser tão decisivas como a potência pura.
Cultura e legado
Para além do espetáculo competitivo, Kigali 2025 tem um peso cultural. O ciclismo é o segundo desporto mais popular do Ruanda, atrás apenas do futebol. No país, a bicicleta é tanto meio de transporte como paixão coletiva. A Volta ao Rwanda já atrai multidões que enchem as estradas de montanha em imagens comparáveis às de um Tour ou de uma Vuelta. Organizar os Mundiais baseia-se nessa cultura e pode acelerar ainda mais o crescimento do desporto.
As autoridades ruandesas enquadram o evento como parte da transformação do país desde o genocídio de 1994. Investimentos em infraestruturas, turismo e estabilidade projetam uma imagem de modernização. O ciclismo, com o selo da UCI, é agora vitrine desse processo. Para os jovens, ver os melhores ciclistas do mundo em Kigali pode ser inspiração para sonhar mais alto e alimentar novas gerações de talentos africanos. Para o turismo, é mais uma peça da campanha "Visit Rwanda", já familiar através de patrocínios no futebol europeu.
Controvérsias e críticas
Nem tudo é celebração. A atribuição do evento a Kigali levantou acusações de sportswashing. Organizações de direitos humanos apontam o dedo ao envolvimento do governo ruandês no conflito da vizinha República Democrática do Congo, através do grupo rebelde M23. O Parlamento Europeu chegou a aprovar uma resolução pedindo que o evento fosse cancelado ou transferido, mas a UCI recusou discutir qualquer "plano B".
Também houve polémica dentro da própria federação ruandesa. Em 2023, dirigentes demitiram-se na sequência de alegações de má gestão financeira, levantando dúvidas sobre a capacidade de organização de um evento desta magnitude. Desde então, a supervisão internacional estabilizou os preparativos, mas as questões de transparência permanecem.
A segurança regional é outro ponto sensível: Kigali é considerada estável, mas faz fronteira com uma zona de conflito. Lappartient foi taxativo: "Não há plano B". Logística e custos também pesam: transportar ciclistas, equipas e material para África Oriental é mais caro e várias federações já reduziram delegações. Além disso, a anulação de uma etapa da Volta ao Ruanda de 2025 levantou dúvidas sobre a preparação de alguns troços do percurso.
Porque Ruanda 2025 é importante
Apesar das críticas, a relevância do evento é inegável. Se o ciclismo pretende ser verdadeiramente global, não pode ficar limitado à Europa e a alguns palcos ocasionais. África, jovem e apaixonada, é uma fronteira inevitável. Estes Mundiais dão aos ciclistas africanos a rara oportunidade de competir em casa, num palco mundial, e podem ser catalisadores de crescimento local e regional.
Para os ciclistas, as discussões políticas desaparecem quando a bandeira desce e a corrida começa. Serão as colinas de Kigali e os paralelos de Kimihurura a coroar os campeões. Mas o impacto do Ruanda 2025 vai além das camisolas atribuídas: ficará como símbolo de uma expansão ousada do ciclismo ou como aviso dos riscos de querer ir mais longe do que o possível.