Geraint Thomas pode ter pendurado a bicicleta, mas não tenciona sair de mansinho enquanto
Tadej Pogacar e a UAE Team Emirates - XRG dominam a
Volta a França. No novo cargo de Diretor de Competição na
INEOS Grenadiers, o campeão de 2018 traçou uma missão clara e ambiciosa: reconstruir a cultura vencedora e recolocar a equipa britânica em posição de lutar pelo amarelo.
Em conversa no mais recente episódio do podcast Watts Occurring com Luke Rowe, Thomas explicou que ficar dentro da estrutura nunca esteve verdadeiramente em dúvida, como confirmou
o anúncio do seu novo cargo.
“Vou continuar na equipa, continuar na INEOS”, disse. “Da minha parte, não queria simplesmente afastar-me do ciclismo. Continuo a adorar correr, continuo a adorar pedalar. Tenho muitos bons amigos na equipa e quero ver a equipa voltar ao topo”.
Geraint Thomas é o novo Diretor de Competição da INEOS Grenadiers
Em vez de se deixar levar pela reforma, Thomas escolheu entrar diretamente no coração do projeto desportivo dos Grenadiers e, crucialmente, já tem um grande alvo bem definido.
“É voltar a ganhar o Tour” - Pogacar como referência, a amarela como objetivo
Thomas não fingiu que o novo papel passa por uma vaga “evolução a longo prazo”. Logo de início no podcast, admitiu que as conversas com Sir Dave Brailsford giram em torno de uma única coisa.
“O Dave B, a falar com ele agora sobre este grande objetivo e tudo o que temos de fazer para lá chegar, é complicado”, disse Thomas, antes de Rowe o desafiar a revelar qual é, afinal, o objetivo.
“Não é segredo, é voltar a ganhar o Tour”, respondeu Thomas. “Ainda não tenho a certeza do calendário, ou pelo menos não o posso dizer. Mas foi isso que nos tornou bem-sucedidos. Foi assim que nos mantivemos num nível muito alto e segurámos um grande patrocinador depois da Sky, porque ganhámos o Tour, fossem quantas fossem, sete”.
Neste momento, claro, o Tour passa por um homem: Tadej Pogacar. Thomas deixou claro que Pogacar continua a ser a referência para qualquer equipa com ambições de amarela, mas sublinhou que o reinado do esloveno não é eterno. “O Pog não vai estar por aí para sempre”, disse Thomas. “Daqui a dois ou três anos, queremos estar numa posição super forte para realmente lutar por isso, com o Pog ou sem o Pog”.
A mensagem é simples: Pogacar pode estar no topo agora, mas a INEOS está farta de ser vista como forasteira. O trabalho de Thomas é garantir que, quando surgir a oportunidade, seja contra Pogacar diretamente ou numa era pós-Pogacar, a INEOS está pronta para atacar.
Recuperar o fio à meada da Sky: a rivalidade com Froome como modelo
Para lá chegar, Thomas quer reavivar a competitividade interna e a exigência de alto rendimento que definiram a hegemonia da Team Sky nos anos 2010. Repetidamente, apontou os anos ao lado de Chris Froome como o modelo do que deve ser um ambiente vencedor.
“Quando estávamos na Sky, o Froomey estava no topo e eu vinha a subir. Eu queria a coroa dele e ele queria mantê-la”, referiu Thomas. “Essa competição foi muito boa porque era feita da maneira certa, sem malícia, sem vingança. Era competição pura e saudável: puxávamo-nos no treino, na nutrição, em tudo. Partilhávamos informação, não era como na Fórmula 1 em que os pilotos parecem totalmente contra o outro”.
Essa mentalidade, acredita, tem de ser replicada em toda a equipa, não apenas entre os líderes de geral, mas em todo o plantel e staff. “Mesmo contigo (Rowe), com o Stannard, o Kiryienka, quem fosse, havia sempre competição por lugares”, disse a Rowe. “Para mim, é parecido com o staff. Temos bom staff, mas como é que estão a impactar a performance esta semana? O que é que estão a fazer que melhora mesmo a equipa?”
Quer que todos na INEOS, dos mecânicos à gestão de topo, sintam a mesma pressão saudável que levou Froome, Bradley Wiggins e o próprio Thomas a conquistas no Tour. “Não pode ser apenas cumprir calendário: ir à corrida, fazer uma massagem, preparar umas garrafas”, afirmou. “Quero mesmo trazer esse nível de foco no desempenho também para o staff”.
Objetivos grandes e exigentes: do “ganhar o Tour em cinco anos” à nova missão da INEOS
Thomas recordou também as declarações ousadas que marcaram a entrada da Sky no WorldTour como parte do sucesso. “Quando a Sky começou… o objetivo era ‘queremos ganhar a Volta a França em cinco anos’”, lembrou. “Vês essa manchete e pensas, ‘Estão malucos, isto não parece possível.’ Depois veio o ‘50 em 5’, ganhar 50 corridas, incluindo cinco grandes. As grandes eram as Grandes Voltas, Monumentos, algumas corridas por etapas importantes. Quando tens um objetivo grande, mesmo que assuste um pouco, isso concentra toda a gente”.
Quer o mesmo nível de ambição e clareza agora. “Isso concentra toda a gente”, disse Thomas. “Dá-te um propósito. Faz as pessoas pensar a sério no que estão a fazer”.
É aqui que Pogacar volta ao centro do quadro. Sabendo que a UAE Team Emirates - XRG é atualmente a referência, Thomas vê isto como o início de uma escalada longa, não uma solução relâmpago.
“Neste momento, a UAE é a melhor equipa. A Visma esteve nesse nível durante alguns anos, depois a UAE ultrapassou-os. Mas, para mim, isto é o início do nosso regresso a esse patamar. Esse é o objetivo, é assim que o vamos conseguir, toda a gente sabe ao que vai, toda a gente sabe o que tem de fazer, e vamos à luta”.
“A transição acabou, pá” – já não há desculpas para falhar
Se há uma frase que vai tocar os adeptos da INEOS frustrados pelos últimos anos, é o veredito direto de Thomas sobre a ideia repetida de que a equipa esteve em “transição”.
“Tem-se falado muito de transição - ‘a equipa está em transição, blá blá blá’,” ironizou. “A transição acabou, pá. É para aqui que vamos. É isto que estamos a fazer. Já não há ‘estamos em transição’, isso torna-se uma desculpa para não render”, exclamou.
Thomas reconheceu que houve uma mudança real e um reset nos bastidores, mas insistiu que, a dada altura, é preciso passar de explicar processos a entregar resultados. “Para ser justo, foi um período de mudança e transição, sem dúvida”, disse. “Mas não se pode ficar sempre a falar disso. A certa altura, já aconteceu. É aqui que estamos, e é para aqui que vamos”.
Sublinhou também que a dominância no desporto de elite é cíclica, a série de Tours da Sky, os New England Patriots na NFL, o Manchester City, os All Blacks e defendeu que não há nada de inevitável na atual supremacia da UAE. “O desporto faz-se de ciclos”, relativizou. “Neste momento a UAE é incrível, mas para mim, é agora que começa. Estamos a caminho. Esse é o objetivo e é assim que o vamos fazer”.
Thomas conquistou a Maillot Jaune para a Team Sky na Volta a França de 2018
Vidas simples, padrão de elite e nada de “princesas”
Para lá dos slogans e da visão macro, Thomas está claramente obcecado com o detalhe do rendimento. No podcast, voltou repetidamente à ideia de que os corredores de elite têm de eliminar o ruído e assumir as rédeas da carreira.
“Ajudar os rapazes a perceber que ‘uma vida simples é uma vida de elite’”, apontou. “Acordas, pequeno-almoço, treino, casa, recuperar, viajar quando é necessário, estágios quando é preciso. A tua casa está bem montada, tens lá tudo o que precisas”.
“Parece óbvio, mas muita gente não funciona assim”, acrescentou. “Andam sempre em viagens: ‘Tenho de ir desta corrida para aquele sítio, depois para acolá, preciso desta bicicleta, daquele saco…’ É tralha mental de que não precisas. Quanto mais limitares isso, melhor”.
Quer corredores pró-ativos, não passivos, não apenas a cumprir um plano, mas a assumir o que precisam de melhorar. “Muitos limitam-se a fazer o que lhes mandam”, disse. “Se estás totalmente ao comando, capitão do teu próprio navio, e todos a bordo estão lá por ti, é muito mais poderoso do que apenas receber ordens”.
Isso estende-se à preparação e reconhecimento de corrida. Enquanto Rowe falou em dar liberdade aos homens de clássicas para irem a Flandres por iniciativa própria, Thomas deixou claro que tem pouca paciência para corredores superprotegidos à espera que tudo lhes caia no colo. “Não queres uma equipa de princesas, isso é certo”, sinalizou. “Trata-se de lhes dar autonomia. Com isso vem responsabilidade e prestação de contas”.
Cultura, honestidade e confiança: aproveitar as relações no pelotão
Um dos maiores trunfos de Thomas neste papel é a confiança que já tem no balneário dos Grenadiers. Acredita que essas relações lhe permitem fazer a ponte entre corredores e direção de uma forma impossível para alguém puramente “de escritório”.
“Sinto que tenho essa relação com muitos dos rapazes, em que, esperemos, podem ser honestos comigo, talvez falem mais abertamente do que falariam com outra pessoa”, disse. “Essa confiança é importante. Se me disserem algo, não vou diretamente falar com a pessoa em causa, a menos que queiram. Vou tentar ajudar a resolver, ou, se quiserem que fale com o Dave ou o treinador, falo”.
Esse processo já começou. “Já tive algumas chamadas com alguns dos rapazes”, revelou Thomas. “Disse-lhes: ‘Olhem, continuamos com a mesma relação de amigos, mas isto também marca o início de uma nova fase.’ Foram honestos comigo, abriram-se sobre temas que a equipa provavelmente não saberia. Isso é bom, é assim que vão evoluir”.
Acima de tudo, quer recriar um ambiente onde corredores e staff se possam confrontar de forma direta mas construtiva, a mesma cultura que Rowe recorda dos anos de expoente máximo da equipa.
“Trata-se de criar um ambiente onde se possa desafiar uns aos outros”, concordou Thomas. “Se eu falhasse, assumia logo. Se achasse que fiz bem e alguém discordasse, chamavam-me à atenção e eu fazia o mesmo com eles”.
“Estou mesmo entusiasmado com isto” – Thomas 2.0
Apesar de toda a conversa sobre estruturas, objetivos e cultura, o que sobressai no podcast é o entusiasmo de Thomas. Não é um retirado relutante a cumprir calendário; é um vencedor do Tour a entrar na fase seguinte com fome genuína.
“Não sei se dá para perceber, mas estou mesmo entusiasmado com isto”, riu-se. “Sinto que tenho muitas ideias. O Dave está sempre a dizer para abrandar, ir com calma. Um passo de cada vez”.
A ambição pessoal também é clara. “O meu objetivo é desenvolver-me o máximo possível, ganhar cada vez mais responsabilidade na equipa e crescer neste papel”.
E para os adeptos que temiam que a subida ao gabinete domasse a sua personalidade, deixou uma última garantia aos ouvintes do Watts Occurring. “Claro que vamos continuar [com o podcast]”, disse a Rowe. “Continuaremos tão honestos como sempre quando falarmos de corridas e afins. Só vai mudar um pouco, continuamos dentro do desporto, apenas de uma perspetiva diferente agora”.
A julgar pelas palavras, essa nova perspetiva pode ser exatamente o que a INEOS Grenadiers tem procurado na busca pelo próximo vencedor da Volta a França – e, para a equipa que já dominou julho, a missão de destronar Pogacar pode ter encontrado um novo arquiteto.