O ciclismo português vive um dos períodos mais consistentes da sua história recente no WorldTour. Longe dos tempos em que a presença nacional ao mais alto nível se resumia a casos isolados, Portugal entra em 2026 com um grupo sólido, diversificado e distribuído por algumas das equipas mais relevantes do pelotão internacional.
João Almeida,
Nelson Oliveira,
Rui Oliveira,
Ivo Oliveira,
António Morgado e
Afonso Eulálio formam um núcleo que cobre quase todos os perfis do ciclismo moderno: candidatos à geral, especialistas em trabalho coletivo, pistards de elite adaptados à estrada e jovens em clara afirmação.
A temporada de 2025 foi histórica, pelos números e pelas sensações. Os atletas portugueses lograram o maior número de vitórias profissionais desde 2009 - 25 -
e colocou João Almeida no top 5 do ranking mundial.
João Almeida: de coadjuvante de luxo a líder assumido
Se houve um português que saiu de 2025 com o estatuto definitivamente consolidado no topo do ciclismo mundial, esse nome foi João Almeida. O corredor da UAE Team Emirates - XRG voltou a demonstrar uma regularidade quase clínica nas provas por etapas, reforçando a imagem de um ciclista capaz de competir ao mais alto nível durante três semanas.
Em 2025, Almeida voltou a ser peça-chave na engrenagem da formação mais dominadora do pelotão. Abriu o ano com dois segundos lugares, na Volta à Comunidade Valenciana e na Volta ao Algarve, corridas onde foi derrotado por Jonas Vingegaard e Santiago Buitrago, respetivamente.
João Almeida poderia ter mais uma vitória no palmarés, mas ofereceu-a ao colega de equipa Jan Christen no Alto da Fóia
Seguiu para o Paris-Nice, onde tinha contas a ajustar, depois de um 8º e um 11º posto em participações anteriores. A má prestação coletiva no contrarrelógio por equipas aguçou-lhe a fome e no dia seguinte, bateu Jonas Vingegaard com classe em La Loge de Gardes. A comunicação social antecipou o grande duelo até ao fim da corrida, mas o dinamarquês caiu e abandonou no dia seguinte, ao passo que o português perdeu muito tempo numa bordure, adoeceu... Salvou-se um 6º lugar na geral final, o que viria a ser o seu pior resultado em provas por etapas, que concluiu, ao longo do ano.
Abril, maio e junho foram de nota máxima para o "bota lume", com uma prova por etapas conquistada em cada um destes meses. Primeiro a Volta ao País Basco, onde venceu duas etapas e a geral; seguiu-se a Volta à Romandia e aqui foi uma vitória da consistência, não ganhou nenhuma etapa, mas fez top 3 nas três últimas tiradas, incluindo o contrarrelógio final, que lhe garantiu o triunfo. A Volta à Suíça foi a mais desafiante de todas, no primeiro dia cedeu mais de 3 minutos para uma fuga vitoriosa, que incluía nomes como Vauquelin, Alaphilippe ou O'Connor. A remontada fez-se passo a passo, incluindo uma vitória com um solo de 49km, e ficou consumada na cronoescalada final. No total, foram 3 etapas + classificação geral.
A forma era uma das melhores da carreira e era neste contexto que se apresentava na Volta a França, ao lado de Tadej Pogacar. Começou bem, estava entre os melhores e até já tinha lançado o campeão do mundo para uma vitória, mas uma queda na 7ª etapa destruiu o sonho do pódio... viria a abandonar dois dias depois.
Recuperou das lesões e pouco mais de 1 mês depois alinhou na Volta a Espanha, com Jonas Vingegaard como grande rival. Os prognósticos estavam certos e este foi mesmo o duelo que marcou as 3 semanas,
Almeida ganhou no mítico Angliru, esteve novamente a um grande nível, mas o antigo bicampeão do Tour foi mais forte e venceu a corrida, com o português a assinar o segundo pódio da carreira em grandes voltas.
Com 69 dias de competição, o desgaste era evidente, mas Almeida ainda foi ao Campeonato da Europa, não alinhou no contrarrelógio e abandonou na prova de estrada, dois dias que em nada beliscam a sua melhor temporada da carreira.
Segue-se um estágio de altitude e o regresso à Volta a Itália, onde tem contas para ajustar, 3 anos depois. O português contará com um compatriota ao seu lado, António Morgado, e deverá ter em Adam Yates o seu braço-direito na alta montanha. Deverá medir forças novamente com Jonas Vingegaard.
Iremos ver João Almeida novamente a vestir de rosa na Volta a Itália, desta feita no pódio final?
Em julho, não haverá Tour, o que o consolida claramente como número 2 da Emirates, atrás de Tadej Pogacar. Regressa em Burgos e fará novamente a Volta a Espanha, onde Primoz Roglic deve ser o principal rival.
Nelson Oliveira: a longevidade como arma competitiva
Aos 36 anos, Nelson Oliveira continua a ser uma das presenças mais fiáveis do ciclismo português no WorldTour. A temporada de 2025 voltou a confirmar aquilo que há muito define a sua carreira: consistência, profissionalismo e uma capacidade ímpar de se adaptar às necessidades da equipa. Na Movistar, o português mantém um estatuto híbrido, tanto útil nas longas jornadas de trabalho coletivo como em contextos mais específicos, como o contrarrelógio e o controlo do pelotão.
Os resultados individuais foram modestos, destacando-se apenas 3 top 15 em contrarrelógios - Gran Camiño, Volta ao País Basco e Volta a França (única grande volta que fez)
- mas Oliveira vale muito mais que isso e a prova é que renovou até 2027, continuando a correr no worldtour até aos 38 anos.
O regresso ao Giro em 2026, já confirmado, representa mais do que uma simples escolha de calendário. É o reconhecimento de um corredor que, mesmo numa fase avançada da carreira, continua a ser visto como peça confiável em corridas de três semanas. O facto de Nelson Oliveira não fechar a porta a uma eventual presença no Tour reflete bem essa realidade: continua a ser opção, não por carência, mas por mérito.
Nelson Oliveira regressa ao Giro 4 anos depois
O calendário inicial de 2026 aponta para uma preparação metódica, com provas de um dia e corridas por etapas de uma semana antes do grande objetivo da primavera. Começa no Challenge de Maiorca, segue para a Volta à Comunidade Valenciana, Figueira Champions Classic, Paris-Nice e Volta a Itália, alargando o contingente nacional. A experiência acumulada permite-lhe gerir a forma com precisão, algo que poucos corredores conseguem fazer ao fim de mais de uma década no WorldTour.
Rui Oliveira: lesões, azares e injustiça
Rui Oliveira viveu em 2025 um ano de afirmação silenciosa, mas significativa. Sem o mediatismo de outros compatriotas, o corredor da UAE Team Emirates tem vindo a construir uma carreira sólida, baseada na polivalência e numa leitura de corrida apurada. A sua transição do velódromo para a estrada deixou há muito de ser um processo em curso; Rui é hoje um ciclista plenamente integrado nas dinâmicas do pelotão WorldTour.
Em 2025, foi o lançador de Juan Molano e quando teve as suas oportunidades, entregou resultados. Somou 12 top 10, com o mais mediático a ocorrer na Volta à Eslovénia, onde levou de vencida a segunda etapa,
mas foi desclassificado por sprint irregular, uma decisão controversa e injusta, que lhe retirou a possibilidade de somar a primeira vitória profissional.
Na Volta à Croácia, por exemplo, só perdeu para um super Paul Magnier. Está a faltar muito pouco para o gaiense concretizar as boas exibições, será 2026 o ano de afirmação?
Por falar na próxima temporada, a perspetiva passa por um reforço desse papel. É um ano muito importante, o último do contrato com a UAE e para já só se conhece o calendário até ao Paris Roubaix. Começa no Challenge de Maiorca, depois virá a Portugal para a Figueira Champions Classic e Volta ao Algarve e desta feita não haverá outra prova por etapas (em 2025 fez o Tirreno, mas abandonou com uma fratura no pulso), mas sim uma preparação pormenorizada para as clássicas do Norte. Tem previsto fazer toda a campanha, com destaque para os dois monumentos - Volta à Flandres e Paris-Roubaix - onde tentará levar Tadej Pogacar à vitória.
Ivo Oliveira: o ano em que deixou de haver "quases"
As lesões largaram o Ivo, os azares largaram o Ivo e o Ivo conquistou vitórias. Não uma, nem duas, mas quatro vitórias (ora bem!). Tudo começou no Giro d'Abruzzo, onde enganou os sprinters e levou para casa a 2ª etapa, no último dia esteve novamente ao ataque e venceu no mano a mano com o antigo colega de equipa Sjoerd Bax.
Ivo Oliveira festejou a dobrar por terras italianas
Menos de dois meses depois, vingou o irmão Rui e venceu a última etapa da Volta à Eslovénia, qual sprinter, impondo-se na velocidade num grupo de 25 ciclistas. Estas foram provas de prestígio, mas nada como sagrar-se campeão nacional e exibir as cores de Portugal na camisola. O Ivo já tinha experimentado isso em 2023 e fê-lo novamente em 2025, novamente no cenário de sprint a dois, diante de Pedro Silva.
Ainda foi à Vuelta, foi essencial na vitória no contrarrelógio coletivo e alcançou um ilustre top 5 no esforço coletivo, tendo também protegido João Almeida nos terrenos planos e média montanha, passando largos quilómetros na frente do pelotão. O Ivo que tinha tantas quedas a estragarem-lhe as temporadas, não concluiu apenas duas corridas este ano - o mundial de Kigali e o Giro dell'Emilia, corridas onde, naturalmente, desligou depois de cumprir o seu trabalho.
Em 2026, a expectativa passa por uma utilização ainda mais estratégica. A UAE continua a ter profundidade suficiente para distribuir papéis, mas Ivo Oliveira surge como uma solução cada vez mais completa, capaz de responder tanto em terrenos rolantes como em finais mais exigentes. Abre a temporada cedo, no Tour Down Under, faz a Figueira Champions Classic e a Volta ao Algarve, Milão-Turim, Volta à Catalunha, Gran Camiño, Volta à Romandia, Boucles de la Mayenne, Tour Auvergne - Rhone Alpes (antigo Dauphiné) e Volta a Espanha, pela quarta vez na carreira. Um calendário denso, com muitas corridas do worldtour e algumas oportunidades para voltar a erguer os braços.
António Morgado: entrada de leão e época de aprendizagem
Eu prometo que o título em nada nos transporta para o meio futebolístico, mas foi a frase certa para definir o arranque de temporada do caldense. Morgado dificilmente podia pedir um melhor arranque de temporada, ganhou logo no primeiro dia de competição, no Gran Premio Castellón, somou pódios
e voltou a vencer na Figueira Champions Classsic, com um solo de 20km.A vitória de António Morgado na Figueira
Nas clássicas sentiu algumas dificuldades, mas fechou a campanha com um pódio na Flèche Brabançonne, menção honrosa para o 24º lugar no Paris-Roubaix, onde terminar, por si só, é um feito estoico.
Só voltou a encontrar boas pernas no campeonato nacional de contrarrelógio, que venceu, pelo segundo ano consecutivo. Seguiram-se 3 top 10 em clássicas, uma delas do worldtour, a ADAC Hamburg Cyclassics, onde foi 7º. Não teve mais lugares de destaque, acusando, eventualmente, algum desgaste, já que começou a temporada em janeiro e terminou-a em outubro, perfazendo 64 dias de competição, sem grandes voltas.
Morgado destacou-se sobretudo pela forma como lê a corrida. Não corre com receio, não espera por permissões tácitas do pelotão e assume riscos quando sente que o momento é favorável. Essa abordagem, cada vez mais valorizada no ciclismo moderno, coloca-o numa posição privilegiada dentro da equipa.
Para 2026, surge um novo desafio, a estreia numa grande volta. Será no Giro, onde já prometeu dar tudo para que o amigo João Almeida saia de Itália com o Troféu Senza Firenze nas mãos. Quanto ao restante calendário, começa novamente por Espanha, neste caso na Clássica Camp de Morvedre. Repetirá presença no Challenge de Maiorca, Figueira Champions Classic e Volta ao Algarve. A partir daqui, surge a grande diferença face a outros anos, não correrá a totalidade da campanha de clássicas, estando apenas prevista a participação na Volta à Flandres. Segue-se a Volta a Itália, tem também programadas a Volta à Áustria, Volta à Alemanha e Volta ao Luxemburgo para a segunda metade do ano.
Afonso Eulálio: que entrada a pés juntos no WorldTour
Afonso Eulálio foi o único estreante português no worldtour em 2025 e consolidou-se com massa consistente na 1ª divisão do ciclismo. Ainda mal se falava da temporada e já o ciclista natural da Figueira da Foz estava a brilhar do outro lado do mundo. No Tour Down Under, Austrália, foi 15º e mostrou ao que vinha. Convenceu a Bahrain e os colegas Antonio Tiberi e Damiano Caruso e integrou a equipa para a Volta a Itália, estreando-se em 3 semanas logo na primeira oportunidade.
Em território transalpino, ajudou os seus líderes e o próprio rubricou uma grande exibição na 17ª etapa, onde foi 10º, abandonaria 2 dias depois, ficando a duas etapas de montanha de concluir a sua primeira grande volta. Seguiu-se um longo período de paragem, regressando de energias renovadas para a segunda metade do ano, onde esteve em bom nível na Volta a Burgos e na Volta à Grã-Bretanha, nesta última foi 6º na geral.
Afonso Eulálio durante o mundial de estrada, em Kigali
Integrado numa estrutura que aposta no desenvolvimento a médio prazo, Eulálio mostrou capacidade de sofrimento, resistência mental e disponibilidade para o trabalho coletivo. São qualidades essenciais num pelotão cada vez mais especializado e competitivo.
Em 2026, espera-se um salto qualitativo. Não necessariamente em termos de vitórias, elas podem surgir, mas estou muito curioso para ver a sua prestação em classificação gerais. Será o único dos portugueses do worldtour que não passará pelo nosso país, tem um calendário bastante "clean". Abre a época no AlUla Tour, no final de janeiro, manter-se-á pelo Oriente e correrá o UAE Tour, seguindo-se a Strade Bianche, Volta à Catalunha, Liege-Bastogne-Liege e Volta a Itália novamente, desta vez com Santiago Buitrago como chefe de fila. O restante calendário ainda não é conhecido, mas será pouco provável que venha a fazer outra grande volta.
Ruben Guerreiro: Um ano delicado que marca o fim do convívio entre os grandes
O "cowboy de Pegões" abriu a temporada com sinais animadores, ao ser 11º na Volta ao Omã e 9º na Figueira Champions Classic. Depois, o azar voltou a aparecer, sucederam-se os abandonos e só voltou a estar em destaque em duas clássicas francesas, com 2 top 10. Daí para a frente, esteve longe da discussão, foi preterido dos alinhamentos das grandes voltas e o desfecho de saída da equipa parecia mais ou menos evidente.
O que esperar agora? Ruben Guerreiro tem 31 anos, todos sabemos que tem muita qualidade, mas as lesões estão a estragar-lhe a carreira. Em termos de lugares disponíveis nas equipas, são escassos, mas, curiosamente, a Movistar é uma das equipas que ainda pode inscrever ciclistas, tem 3 vagas. No segundo escalão, há algumas opções, mas as duas equipas principais - Q36.5 e Tudor - já têm o plantel cheio, pelo que estaremos atentos e noticiaremos quando a carreira do português tiver um caminho definido.
Menção honrosa: Rui Costa, o legado que permanece
A temporada de 2025 marcou o fim da carreira profissional de Rui Costa. Campeão do mundo, vencedor de etapas na Volta a França e na Volta a Espanha e uma das figuras mais marcantes do ciclismo português de sempre, o antigo corredor encerrou o percurso competitivo deixando um legado que transcende resultados.
Rui Costa foi durante mais de uma década a principal referência internacional do ciclismo nacional. Abriu portas, criou precedentes e mostrou que um ciclista português podia vencer ao mais alto nível sem abdicar da sua identidade. O seu impacto sente-se hoje na naturalidade com que se fala de portugueses no WorldTour.
A sua saída do pelotão não representa um vazio em 2025, mas sim a passagem de um testemunho. A geração atual corre num contexto que Rui Costa ajudou a construir.
2026 como espelho de maturidade coletiva
Olhando para o conjunto, o ciclismo português entra em 2026 com maturidade. Há líderes, há executantes, há jovens em crescimento e há veteranos que continuam a ser úteis. Não existe dependência excessiva de um único nome, nem promessas inflacionadas sem base competitiva.
Num pelotão cada vez mais global e exigente, Portugal mantém-se presente, competitivo e relevante. A temporada de 2026 não promete revoluções, mas oferece algo talvez mais valioso: continuidade, solidez e a possibilidade real de novos passos em frente.
Num desporto onde nada é garantido, isso já é uma vitória silenciosa.